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As câmeras de Bodanzky

22 de abril de 2024

A construção da Retrospectiva Jorge Bodanzky no Cinema do Instituto Moreira Salles resultou na revisão e descoberta de um rico acervo de imagens que mostram muito sobre os últimos 60 anos da vida no Brasil. A imagem como espelho político da Cultura é também reveladora do próprio observador que as filmou, Jorge Bodanzky.

Esse lote de filmes, que será apresentado ao longo de 2024 nas nossas salas de cinema em São Paulo e em Poços de Caldas, é fruto do projeto de retrospectiva em cinema programada ao lado da exposição Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985.

A relação de Bodanzky com essas imagens que ele mesmo filmou e fotografou, e a preservação desse material que ele próprio guardou, é rara no panorama brasileiro de cinema. No Brasil, acervos demais já foram perdidos, e muitos outros continuam se perdendo. Também não é comum ver cineastas tão íntimos da sua própria produção, o artista como o seu próprio arquivista.

A Coleção Jorge Bodanzky foi adquirida em 2013 pelo IMS via área de Fotografia Contemporânea, coordenada por Thyago Nogueira. Esse material foi digitalizado a partir de formatos técnicos distintos, que cobrem décadas de trabalho, cinema e fotografia.

As relações profissionais de Bodanzky na Alemanha, onde foi aluno da Escola de Design de Ulm (Institut für Filmgestaltung an der HFG Ulm) e cameraman na TV alemã, ressaltam o trabalho profissional que casou com o desejo de filmar o Brasil com os meios disponíveis.

Uma parte importante dessa trajetória de décadas foi dedicada à Amazônia, tanto nas imagens de sua vastidão geográfica como na paisagem humana e política dessa região.

O arquivo hoje guardado no IMS pode ser visto como uma série de álbuns pessoais, que mostram uma versão singular do próprio país, em formatos de captação de imagem que vão da película Kodak 16 mm e super-8 à fotografia 35 mm feita, em grande parte, com a sua câmera Pentax. Parte dessas fotos integra a exposição.

Há ainda as fitas de vídeo magnéticas e digitais de décadas seguintes. Numa visão panorâmica das imagens rodadas por Bodanzky ao longo da vida, observamos que esse desejo de filmar permaneceu constante. Hoje, vejo que ele usa um iPhone como câmera.

Naturalmente, há uma discrepância de textura nos seus arquivos de imagens entre o material 16 milímetros – viabilizado pelo trabalho profissional com os alemães – e o formato doméstico super-8, que Bodanzky adquiriu no início dos anos 1970. Ele sempre chamou o super-8 de seu “caderno de notas”, inclusive a sua câmera Nizo era muda.

Com esse arquivo na casa, o Cinema do IMS comissionou montagens especiais de curta-metragem, executadas por Ewerton Belico e Luiz e Ricardo Pretti. Os filmes irão abrir nossas sessões especiais dedicadas aos longas-metragens que são frutos da obra de Bodanzky.

As obras comissionadas são exercícios de edição que reorganizam a trajetória de Jorge Bodanzky em documentos de som e imagem, montados em frentes temáticas sugeridas: Bodanzky repórter, O viajante, a sua relação com a Amazônia, Imagens de família e Modos de ver. Delicadamente, ao longo do processo, tentamos equilibrar a visão de cinema dos autores convidados e a personalidade original de Bodanzky, o autor desse arquivo.

Os cinco curtas remixados por Belico e os Irmãos Pretti ilustram indiretamente as dificuldades históricas da preservação de imagens brasileiras. O super-8, a bitola de filmagem caseira adotada por famílias de classe média alta no Brasil do final dos anos 1960, e por toda a década de 1970, permanece mais do que nunca um tesouro de informações registradas, e que exige um projeto de abrangência nacional de pesquisa, escaneamento e guarda.

É bom poder relatar aqui que, durante o processo de construção desta retrospectiva, e da visualização do arquivo Bodansky, ele próprio nos informou que estava trabalhando num novo filme gerado pela própria consciência, energia e revisão das suas imagens arquivadas. Um olhar inquieto (título provisório) é uma revisão falada em primeira pessoa de uma vida filmada.

Nesse arquivo pessoal, há evidentemente uma ponte para os filmes. As imagens anotadas em super-8 estabelecem um elo entre o desejo de registro e a aproximação gradual de um projeto, como o que veio a ser Iracema: uma transa amazônica (1974), Gitirana (1976) e Terceiro milênio (1981). Os dois primeiros são codireções Bodanzky/Orlando Senna, o terceiro codirigido por Wolf Gauer.

Os três filmes foram colaborações com a rede alemã de TV ZDF. O super-8 levou ao 16 mm e, no caso de Iracema, finalmente ao 35 mm, formato que permitiu que o filme circulasse internacionalmente, inclusive sendo selecionado na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 1975.

Poder exibir este ano no Cinema do IMS a versão restaurada de Iracema: uma transa amazônica torna-se uma dupla alegria. O filme completa 50 anos, bagunçou da melhor maneira o sentido de “ficção” e de “documentário” num cinema brasileiro que ainda era fortemente pautado pelo Cinema Novo feito nos anos 1960 e pela pornochanchada dos anos 1970. Em 1974, o país estava amarrado pela censura cinematográfica de filmes estrangeiros e brasileiros.

Iracema, com imagens de um Brasil transamazônico e desenvolvimentista que o governo militar não aprovava, foi mais visto no exterior do que no Brasil, que boicotou o filme (uma coprodução alemã), e não o reconheceu como brasileiro.

Para o Cinema do IMS, o projeto de rever a obra de Bodanzky nas nossas salas de projeção não se restringe a um trabalho apenas de programação. O grande desafio no país ao programar a produção brasileira de repertório é entender onde e em que estado se encontram os títulos, certamente uma das partes mais difíceis de um projeto de programação.

Esse esforço de revisão técnica, digitalização de filmes da trajetória de Jorge Bodanzky e restaurações foi fruto, de uma forma ou de outra, de uma união entre as áreas do Cinema e da Fotografia Contemporânea no IMS, do projeto Restauro da Obra de Jorge Bodanzky, conduzido por Alice de Andrade, e pelo entusiasmo dos cineastas Walter Salles e João Moreira Salles. Alice de Andrade já havia produzido a restauração da obra do seu pai, Joaquim Pedro de Andrade. Toda a obra restaurada de Joaquim Pedro já foi revista integralmente na programação do Cinema do IMS.

A utilização de novas tecnologias de escaneamento e restauração digital passam a ser possibilidades reais de trabalho junto ao desejo de programação e curadoria. É fato também que, nos últimos dez anos, essa tecnologia tem se mostrado mais acessível financeiramente, com um acesso maior a equipamentos e softwares de imagem aqui mesmo no Brasil.

Observo que, se há um fruto positivo gerado do momento sombrio pelo qual passou a produção audiovisual no país e a Cinemateca Brasileira durante os governos Temer e Bolsonaro, terá sido uma maior consciência em torno da fragilidade e da importância da preservação do audiovisual brasileiro. Há hoje uma discussão e compreensão maiores em torno do tema.

Nossa programação de filmes realizados por Jorge Bodanzky, ou feitos com a sua participação – e que não fazem parte da Coleção Jorge Bodanzky adquirida pelo IMS – foi montada com a ajuda da Cinemateca Brasileira, da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), do Centro Técnico Audiovisual (CTAv), do Arquivo Nacional, do MIS (São Paulo) e da rede de televisão alemã ZDF. É bom poder apresentar títulos como Os Muckers, Jari, Igreja dos oprimidos e Caminhos de Valderez valorizadas pelo esforço desta curadoria.

Entre tantas imagens guardadas e revistas no cinema e na obra de Jorge Bodanzky, eu gostaria de destacar uma descoberta pessoal minha, o grande filme sobre o Brasil que é Terceiro milênio. O filme será apresentado nesta curadoria logo após a sua restauração na Alemanha, a partir dos elementos originais em negativo 16 mm.

Em 93 minutos, há algo de um périplo de Ulisses nas imagens de um político brasileiro, o senador Evandro Carreira, viajando pela Amazônia de 1980 via rio Solimões, perto da fronteira com o Peru. Bodanzky e Gauer acompanham o senador, não só uma versão genuína e brasileira de Ulisses, mas também dotado de elementos de Amaral Neto e Odorico Paraguaçu.

Na verdade, as referências não fazem justiça à verve de Evandro Carreira, à sua desenvoltura moderna diante da câmera, à sua abertura às misturas humanas e à complexidade continental que continua separando o Brasil como país e cultura. Evaldo distribui uns trocados e latas de leite, trabalhando as suas bases eleitorais como manda o figurino da política. Ele deixa claro que a Amazônia está bem longe de Brasília, que descreve como “um cemitério de almas”.

Evaldo é por si só um documento bem guardado dentro desse filme. O homem branco brasileiro de algum poder político, da geração que se formou nas décadas de 1940 e 1950. É letrado o suficiente para florear suas falas com proparoxítonas e real sentimento, marcando suas ações com os lugares superiores de fala, numa sociedade que é tão desigual.

Eu não detestei o senador Evandro Carreira, mas fiquei fascinado por ele não só mostrar compreensão pelo país e pela Amazônia, mas também por encarnar tudo o que há de bom e de ruim na ideia de um poder político no próprio Brasil. “A Amazônia é uma Polinésia!”, “a Amazônia é fotossíntese e tem potencialidade proteica!”. A Amazônia “como uma mulher a ser desvirginada, deflorada, mas não estuprada!”. Talvez só no Brasil algumas dessas falas e imagens sejam possíveis.

O enterro do que sobrou da cabeça de um funcionário de madeireira que encontrou indígenas agressivos. O sotaque de personagens indígenas falando o português como os estrangeiros brasileiros que são. Tudo fica tão colonial ao ouvi-los. Xingar alguém de “Tikuna!”, um sotaque que não é reconhecido no nosso país, seja como estrangeiro ou como regional. Um rapaz indígena com cara brasileira e sotaque estrangeiro dizendo resignado “vida de pobre é assim…”.

É um relato bastante cru como filme, mas a naturalidade e a complexidade do Brasil permanecem intactas e livres, um pouco como o sentimento de ver Iracema: uma transa Amazônica pela primeira vez, ou Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, ou Opinião pública, de Arnaldo Jabor.

Poder apresentar Terceiro milênio em versão restaurada para uma nova geração de espectadores torna-se uma sessão de cinema que explica o porquê de todo esse trabalho.

Os filmes da programação serão apresentados em película ou em DCP, nas melhores condições possíveis de cópias guardadas, ou via novas digitalizações ou restaurações.

O trabalho de manuseio dos elementos originais guardados em arquivos foi coordenado pela especialista em preservação Debora Butruce, que tem colaborado já há alguns anos com o Cinema do IMS nessa área. O diálogo com as instituições parceiras e o licenciamento de obras não seria possível sem o apoio da equipe de produção de exposições. E nossa pequena, mas feroz equipe de cinema é formada por Márcia Vaz, Thiago Gallego, Lucas Gonçalves e Quesia do Carmo.