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Música e dança como hiatos de liberdade negra em Small Axe

22 de novembro de 2024

O interesse pelas consequências de eventos ou períodos violentos da História nas relações sociais do presente marca parte significativa da filmografia do cineasta britânico Steve McQueen, e possivelmente explica o seu apelo a registros mais realistas em diferentes trabalhos. A forma como o diretor escolhe filmar episódios reais de opressão e resistência de imigrantes afro-caribenhos na Londres das décadas de 1960, 1970 e 1980 na série Small Axe, de 2020, é evidência disso: há um compromisso documental em ficcionalizar o que poucas vezes foi dado a ver sob a perspectiva crítica de artistas negros no cinema ou na TV ocidentais. 

A dilatação temporal e a filmagem vertiginosa, com muitos momentos de câmera na mão, escolhidas por McQueen para reconstituir cenas da vivência cultural afro-caribenha e afro-britânica no segundo dos cinco episódios da série (Lovers Rock) têm chamativa e atrativa singularidade em meio aos demais capítulos – todos independentes entre si. Complexidade que ganha inevitável maior espaço de abordagem neste texto. 

Carregado de uma trilha sonora que mobiliza ritmos e gêneros, como reggae, dub, rocksteady e disco music, Lovers Rock foi selecionado, ao lado do filme Mangrove, para exibição na edição do Festival de Cannes que aconteceria em 2020 e foi cancelada devido à pandemia de covid-19. O longa-metragem se tornou obra de abertura do 58º Festival de Cinema de Nova York (realizado online) e foi escolhido o melhor filme de 2020 pela Associação de Críticos de Chicago. 

Bem como a maioria dos demais longas que compõem Small Axe, Lovers Rock parte de um caso real. Porém, dessa vez, com origem em uma memória afetiva do diretor, o que talvez o tenha permitido maior liberdade para a inventividade cinematográfica. À revista estadunidense Esquire, McQueen, que é filho de imigrantes caribenhos, contou que queria apenas fazer um filme sobre sua tia Molly. Ela costumava fugir de casa e cruzar bairros de Londres para ir às chamadas blues parties, festas caseiras que a comunidade jamaicana da cidade promovia na década de 1980 a partir da influência do sound system (populares discotecas móveis da Jamaica). 

No episódio, acompanhamos os preparativos e o desenvolvimento de uma blues party. Há uma personagem protagonista, Martha Trenton (Amarah-Jae St. Aubyn), que foge de casa para ir ao evento. Entretanto, a centralidade mesmo está nas imagens dos corpos negros dançantes em coletivo. São planos e sequências por vezes longos, que causam um efeito vertiginoso e sedutor em quem assiste, fazendo o encontro com o tempo do filme dilatar a percepção do tempo que a sessão dura na realidade do espectador (70 minutos). 

O título da obra foi nome de um selo musical britânico criado por Dennis Bovell, guitarrista de reggae nascido em Barbados e radicado na Inglaterra, que, por sua vez, foi inspirado em música homônima de Augustus Pablo (1954-1999), artista e produtor jamaicano de dub. Devido ao perfil dos músicos que o selo promovia, seu nome se tornou o de um gênero musical, o lovers rock, que, em termos práticos, pode ser considerado a versão romântica do reggae. O ritmo virou sinônimo da popularização do reggae na Inglaterra, e nomeia o episódio dirigido por McQueen por ser o tipo de música preferido da protagonista Martha. 

Se no primeiro capítulo da série (Mangrove) a fisicalidade e a cultura afro-caribenhas tomam a tela de forma mais ambivalente – a corporeidade das personagens permite a elas afirmar sua cultura por meio da culinária, da música e da dança, mas também resistir objetiva e energicamente a violências físicas de policiais racistas –, em Lovers Rock essas instâncias tomam conta do percurso serpenteado da trama, que evidencia as expressividades corporais e musicais presentes nas blues parties como sinônimo de liberdade e libertação. Algo que, considerando as experiências comuns das afrodiásporas ao redor do mundo, nos faz lembrar uma colocação feita pela historiadora, poetisa e militante negra brasileira Maria Beatriz Nascimento (19942-1995) no documentário ensaístico Orí (Raquel Gerber, 1989). Acima das imagens de um baile black da Chic Show realizado na cidade de São Paulo na década de 1980, diz a narração de Nascimento: “Não é à toa que a dança para o negro é uma forma de libertação. O homem negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer o cativeiro, não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo.”

Nesse sentido, em Lovers Rock destaca-se a passagem na qual é mostrada uma dança coletiva ao som de “Silly Games”, música de Janet Kay lançada em 1979 e considerada o primeiro grande sucesso do gênero lovers rock. A cena culmina em um lindo momento de canto a capela realizado pelos dançantes em êxtase, e pode ser percebida como uma ressonância, uma vibração, ao ser continuidade de uma das imagens iniciais do episódio: o momento em que as anfitriãs da festa preparam na cozinha a comida a ser servida enquanto cantam, entre gargalhadas, “Sillyyyy gaaames”. 

Há também a sequência da dança sensual entre a protagonista e seu par na noite, na qual o close no encaixe das pelves anuncia a vazão sexual como parte das liberdades emanadas e intrínsecas àquelas festas. Por fim, há uma visceral sequência que evidencia um contraste sexista com as duas anteriores. É o momento em que os homens da festa começam a dançar de forma efusiva: a câmera enquadra em primeiro plano seus corpos e estados de espirito alterados pela música e pelo fumo; alguns deles se contorcem no chão, remetendo a um estado de transe que é reiterado pela instabilidade das imagens. Principais alvos da polícia, homens negros, ao poderem ali estar e sentir-se livres, dançam de maneira literalmente enlouquecida. Transpiram. Transcendem. 

Em torno das cenas de dança e da movimentação de Martha no espaço da festa, abrem-se histórias a serem desveladas em meio ao passeio da câmera – uma espécie de “câmera-olho” ficcional – por ambientes internos e externos. Assim, observamos a relação de competição pela atenção dos homens entre as mulheres presentes; um iminente abuso sexual a ser cometido no jardim e corajosamente interrompido pela protagonista; e um tenso reencontro dela com seu primo, Clifton (Kedar Williams-Stirling), jovem rebelde e emocionalmente instável, que consegue acessar a festa sob tensão com o segurança. Este prefere deixá-lo entrar do que fazer a discussão que estão travando na porta chamar a atenção da polícia que passa na rua. Bem como ocorreu na História, as blues parties se apresentam, então, também como ambiente de acolhimento e proteção frente aos dramas pessoais de cada um dos presentes e à hostilidade racista da polícia na cidade. 

Aliás, muitas vezes durante o episódio temos a impressão de escutar a sirene de viaturas. Porém, a todo momento esse som é desestabilizado, ao ser confundido, ou melhor, incorporado como parte da trilha sonora da festa. Num jogo que brinca com a expectativa negativa comumente criada quando são associadas imagens de jovens negros ao som e à luz de carros de polícia, a percepção da sirene como dispositivo de alerta hostil a esse grupo é subvertida por meio do controle musical desse som, não apenas pelos DJs da festa, como também, no âmbito extradiegético, do próprio diretor do filme. Ou seja, expressividades artístico-culturais são assumidas como forma política de transgressão de dispositivos e símbolos que oprimem negros. 

A proposta mais experimental de filmagem em Lovers Rock – destaque para a direção de fotografia do antiguano Shabier Kirchner, vencedor do Bafta pelo trabalho em Small Axe – contrasta significativamente com o retorno a uma reconstituição histórica realista de lapidação comercial no episódio seguinte, que, se assistido conforme a ordem dos capítulos da série, apresenta-se com capacidade muito mais tímida de impacto. 

Baseado na história real de Leroy Logan, policial britânico fundador da Associação de Polícia Negra do Reino Unido, o filme Red, White & Blue [Vermelho, branco e azul, justamente as cores das sirenes dos carros de polícia] joga luz e adentra o modus operandi da instituição reiterada como hostil aos negros nos diferentes capítulos. 

Logan (interpretado por John Boyega, vencedor do Globo de Ouro pelo papel) interrompeu sua carreira como cientista na área forense para adentrar a reconhecidamente racista polícia metropolitana de Londres, durante o período de tensões raciais do governo de Margaret Thatcher, entre 1979 e 1990. No filme, sua decisão se dá após dois policiais racistas agredirem seu pai, Kenneth (Steve Toussaint), acusado injustamente de ter estacionado seu veículo de forma ilegal, e hospitalizado depois da agressão. 

Nesse cenário, a motivação do protagonista – um assumido e solitário idealista – é mudar a instituição policial desde dentro. Mas a aposta tem resultado limitado diante das explícitas e contínuas violências racistas que os seus sofrem nas ruas e das provocações e espécies de boicotes que ele mesmo sofre no trabalho. O impasse rende cenas de conflito entre o protagonista e seu pai, e também entre o protagonista e os demais membros de sua comunidade negra, que passa a acusá-lo de traição. 

A escolha de McQueen em dirigir cenas violentas sutis ou explícitas contra negros em um registro mais realista – o mesmo acontece em Mangrove, e em seu premiado filme 12 anos de escravidão – chama a atenção, possivelmente como forma de instigar no público um tipo de indignação histórica que, então, não deve ser necessariamente superada.

Em um filme que também aposta em imagens do gênero ação, a lapidação estética dessas cenas permite dramaticidade a elas. Mas, à luz dos contemporâneos debates brasileiros sobre representação da violência contra corpos negros na história do cinema e do audiovisual, também nos leva a questionar: até que ponto é possível “envernizar” a violência contra negros nas artes? Até que ponto ou como e quando esse “verniz” suaviza ou potencializa a força realista de imagens audiovisuais que interpelam espectadores tão negros quanto as personagens retratadas?

Espelhando a complexidade dessas questões, canções de artistas como Al Green e Gloria Jones permeiam a apresentação de uma faceta mais desesperançosa da história de Leroy Logan – na vida real, um homem negro que trabalhou na polícia londrina por 30 anos –, e compõem uma trilha sonora que nos permite não esquecer também da beleza intrinsecamente libertária de ritmos e músicas negras (e/ou de origem negra) criados e escutados em concomitância às históricas mazelas do racismo.