Cinema é cachoeira - Os filmes de Ary Rosa e Glenda Nicácio está em cartaz no cinema do IMS Paulista em julho.
“De que outra forma eu posso machucar alguém?” É a pergunta-resposta de Arlete (Arlete Dias) em Mugunzá (Ary Rosa, Glenda Nicácio, 2022) ao ser acusada pelo ex-companheiro (Fabrício Boliveira) de usar as palavras para ferir. Palavras machucam, imagens vingam, canções rasgam… Os filmes da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio circulam em torno de uma proposta artística que emana do encontro da beleza com a violência. Ou, como diz Emerson (Renan Motta) aos espectadores em Ilha (Ary Rosa, Glenda Nicácio, 2018), será necessário “engolir a subjetividade à seco”. Trata-se de poesia e trauma, no trauma, do trauma. Ou apenas cinema da perspectiva dos que não foram escolhidos por este.
A estreia da parceria na direção de longas-metragens de Ary Rosa e Glenda Nicácio em Café com canela (2017) já apresentava os contornos dessas dualidades, com o brutal luto de Margarida (Valdinéia Soriano) após a precoce morte do filho e a lenta superação deste a partir do restaurador reencontro com a jovem Violeta (Aline Brune). “Mas tinha que respirar”, a jovem recita insistentemente a canção de Maria Bethânia para a ex-professora paralisada pela dor. Violeta já nos faz perceber que, se a poesia das palavras e das imagens machucam, na mesma intensidade elas curam e transformam, nos filmes de Ary e Glenda.
“Aqui os filmes são subdesenvolvidos por natureza e vocação”, grita Emerson em Ilha. O segundo longa da dupla se assume em sua metalinguagem como filme-manifesto de um cinema que perseguirá maneiras de unir visceralidade e encanto, experimentando com formas narrativas variadas. No longa, o consagrado cineasta Henrique (Aldri Anunciação) é sequestrado por Emerson e levado até a sua ilha, para filmar a história da vida do rapaz. A partir desse processo de realização de um filme (sobre a infância de Emerson) dentro do filme, um engenhoso jogo de dobras começa a se montar. Vida e cinema se espelham e se confundem: a câmera para o que é ficção fica com Henrique (o cineasta), e outra, do que é real, o filme sendo feito, pertence a Thacle (interpretado por Thacle de Souza, um dos diretores de fotografia e operadores de câmeras do filme, junto com Augusto Bortolini e Poliana Costa). O diretor de fotografia interpreta um personagem com o seu próprio nome, que exerce a sua mesma função. “Isso é brincadeira?”, pergunta Henrique, nesse momento um cineasta convencional e desprovido de tesão. “Não, isso é cinema”, responde o confiante Emerson.
A câmera no filme treme, balança, olha de locais improváveis, pois é presença em cena – está encarnada em Thacle personagem. Um estratagema que possibilita ao filme deslizar sobre as dobras da vida e do cinema. E nos dá inesperadas belezas, como ao filmar a cena de sexo apaixonado entre Henrique e Emerson a partir do balé dos pés dos personagens sobre o chão de terra – pois, ao perceber que os dois finalmente estavam se entregando ao amor, Thacle abondona a câmera no chão, e o vemos indo embora no fundo do plano. A câmera do filme perde temporariamente sua carne para que o encontro se concentre exclusivamente à sua frente.
Se o artifício aparece de forma mais pontual (e simbólica) na construção fílmica de Café com canela – concentrado, sobretudo, nas cenas em que o estado psíquico de luto e desespero de Margarida contamina o espaço cênico da sua casa, com paredes que se comprimem, sangram e choram –, em Ilha e em três dos longas posteriores (Até o fim, 2020; Voltei!, 2021; e Mugunzá, 2022), a metalinguagem se instala como fundamento. “Às vezes a realidade parece ficção”, explica Emerson, anunciando no filme (e no filme dentro do filme), o cinema como essa mistura incerta de realismo e artifício. Assim, é preciso colocar um filtro sobre a lente para a imagem não estourar – e, enquanto se busca a luz certa, a ação acontece à revelia. É preciso enquadrar as mulheres trabalhando no mar em primeiro plano para preencher o quadro, deixando a ação para o fundo. No filme dentro do filme, é preciso dar um tiro de verdade no cachorro. Tudo isso para nos lembrar que estamos diante de uma ficção, de algo construído, da tela como opacidade – ou, simplesmente, do cinema.
Artifício que contamina também a construção dos espaços fílmicos que se fazem e desfazem com as narrativas. Em Ilha, a própria configuração geográfica do ambiente constitui uma peça importante: o espaço do filme é de isolamento e captura (da ilha ninguém sai, é o que as personagens não param de dizer). Na cena do bar ou do teste de elenco, vaza ainda um pouco da construção dos locais públicos com uma ideia de comunidade (que marca a forma como Café com canela se territorializa em Cachoeira, BA), porém esses espaços de partilha social coabitam no filme com espaços mentais ou de isolamento, como as cenas de memórias reencenadas, de vielas desertas e de casas em ruínas. É uma ilha geográfica, e também simbólica. Em Até o fim (2020), Voltei! (2021) e Mugunzá (2022), a construção de um espaço teatral para a encenação passa a ser experimentada e reinventada. O cenário torna-se quase único para cada um desses filmes – o estabelecimento da família, a sala de casa, um bar. Tão concretos quanto abstratos. Como no bar de Mugunzá, que faz coexistir balcão, copos, garrafas com escombros, velas acesas e divisórias de madeira.
O processo de intensificação dos filmes como constructos cênicos assumidos ocorre também ao notarmos a diminuição da quantidade de personagens e atores/atrizes para cada história e a transformação da forma da encenação, que incorpora uma teatralização. Em Até o fim, a história trata do reencontro de quatro irmãs, Geralda (Wal Diaz), Rose (Arlete Dias), Bel (Maíra Azevedo) e Vilmar (Jenny Müller), que esperam (e torcem) pela morte do pai. No distópico Voltei!, a narrativa está situada em um futuro próximo, no qual um governo autoritário e violento se instaurou na República do Disparate (também conhecida por Brasil) e vemos o reencontro das irmãs Alayr (Arlete Dias) e Sabrina (Mary Dias) com a irmã desaparecida pela repressão, Fátima (Wal Diaz). Já em Mugunzá, Arlete Dias interpreta Arlete, uma mulher que acaba de perder o grande amor de sua vida, Joana, e pretende se vingar dos homens que foram seus algozes, interpretados todos por Fabrício Boliveira. Embora a fórmula se assemelhe, cada um desses três filmes cria uma dinâmica própria, envolvendo maneiras de desdobrar o cenário limitado em diferentes ambientes e uma presença próxima e coreografada da câmera. Uma simbiose entre uma encenação que assume o seu caráter performático pró-câmera e uma construção estudada dos elementos cênicos – luz, objetos, figurinos. Simbiose que se explica pelas funções desdobradas dos diretores na maioria dos filmes, Ary Rosa assumindo os roteiros e Glenda Nicácio, as direções de arte.
Entrando no circuito de forma conjunta, o segundo e o penúltimo filme da dupla – Ilha e Mugunzá – partilham mais do que o ineditismo nas salas de cinema de circuito. Ambos os filmes adentram a dualidade poesia e violência pela chave da tragédia – em que o desfecho está dado desde o princípio e parece não haver soluções. Em Ilha, o destino trágico foi anunciado desde a gravação do exercício de oficina de cinema, da qual participaram Emerson e Thacle ainda crianças. Na oficina ministrada por Henrique, anos antes, as crianças encenam uma perseguição polícia-bandido, na qual, ao fim, Emerson criança é alvejado e morto de mentirinha. Anos depois, a profecia autoproclamada se cumpre: não há como sair da ilha para os que são de lá. E o sequestro de Henrique se encerra repetindo a mesma cena, no mesmo lugar – Emerson é alvejado por diversos tiros, dessa vez de verdade. Não é brincadeira, é cinema.
No musical Mugunzá, o que aprisiona Arlete é Cachoeira e os diversos homens que a decepcionaram e perseguiram: seu próprio pai, o pai do filho, “meu prefeito” e o prefeitinho. Portanto, uma Cachoeira que a prende por inúmeras camadas de patriarcado. Após ser violentada junto com a companheira, que foi morta, perder os laços com a cidade que a renega, ser expulsa do próprio bar, o que resta a Arlete é a vingança. Pois, como ela nos lembra em seu desamparo, “o destino não é inexorável”. Sua saga se dará numa via crucis de datas religiosas/espirituais e suas festas populares: Festa d’Ajuda, Festa de Iemanjá, Festa de São João e Festa da Boa Morte. Cada um desses festejos adentram e modificam o cenário do filme e os elementos cênicos. Afinal, Mugunzá é um filme em que mortos e vivos coabitam, e a membrana entre visível e invisível torna-se quase translúcida. O vermelho do vestido de Arlete e das luzes do cenário saturam tudo ao redor. As canções cantadas pela personagem (compostas por Moreira para o filme) nos guiam por suas dores, seus humores e seus desejos.
Emerson e Arlete estão condenados antes mesmo que suas histórias se desenrolem. Ao mesmo tempo, são também personagens que ativamente assumem a violência e a arte como armas de sua vingança. O patriarca e a estrutura patriarcal (tão recorrentes como antagonistas dos filmes de Ary e Glenda) serão mortos pelas mãos e gestos de suas vítimas – a faca em Ilha, a comida envenenada em Mugunzá. Arlete e Emerson são também aqueles que decidem recontar a sua própria tragédia como arte: o filme do filme em Ilha e a escrita desenfreada de Arlete em seu caderno em Mugunzá. Recontar, assumir a própria narrativa e fazer outros partilharem de seu destino trágico são também armas de suas vinganças.
Palavras machucam, imagens vingam, canções rasgam. Mas também, e por essa mesma violenta força, esses gestos artísticos transformam e abraçam. Ainda que seja apenas pela sobreposição do filme projetado unindo novamente Henrique e Emerson ou na fugaz dança de despedida de Arlete com Joana, a amante que já se foi. Ainda que seja apenas no cinema – o cinema dos não escolhidos, mas que nos escolhera.