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No mesmo barco

02 de abril de 2020

Tempos de crise planetária como os que estamos vivendo reforçam a consciência, ou antes o sentimento, de que cada um de nós faz parte de algo maior, compartilha com os semelhantes uma fragilidade comum, e uma possível grandeza comum também. No cinema, alguns dos momentos mais comoventes e inesquecíveis, a meu ver, são aqueles em que tal consciência ou sentimento emerge de modo fugaz, como epifanias profanas, instantes de iluminação e transcendência. Estados de graça.

Nada a ver com mensagens religiosas, edificantes ou de autoajuda. São, ao contrário, fulgurações improváveis, lances de espanto, que brotam da relação entre os personagens, não raro do atrito entre eles.

 

Êxtase sem nome

Para que esta conversa não fique muito abstrata, vamos a alguns exemplos. O primeiro que me vem à mente é a sequência de Amarcord (Federico Fellini, 1973) em que a população de Rimini sai para alto mar em botes e pequenos barcos para saudar a passagem do transatlântico Rex.

Cada indivíduo ali tem uma história e uma personalidade própria, cada um deles projeta no evento seus desejos, suas carências, seus sonhos. O cego toca seu acordeão, a fogosa Gradisca pensa em seus amores frustrados, o fascista local exalta o navio como “obra do regime”, outro se deslumbra porque ele “vem da América”, as crianças se encantam com as luzes, etc. Não importa: a passagem do Rex os irmana a todos num êxtase sem nome. Ou cujo nome talvez seja cinema.

 

 

O significado do encontro, da comunhão, é ainda mais forte quando se dá entre personagens antagônicos, representantes de exércitos, povos ou culturas distintos. Um caso clássico é o do final de Glória feita de sangue (Stanley Kubrick, 1957), talvez o melhor filme de guerra (ou antiguerra) já feito. Numa taverna lotada de soldados franceses embrutecidos, uma frágil alemãzinha (Christiane Harlan, que se tornaria mulher do diretor) é forçada a cantar para eles – e o resultado é a cena que se segue.

 

 

(Entre parênteses: muitas passagens dessa espécie ocorrem nos minutos finais dos filmes, de modo que os eventuais spoilers aqui serão inevitáveis.)

Na mesma linha, com outro tom, há o final de Furyo: Em nome da honra (Nagisa Oshima, 1983), em que o oficial britânico Lawrence (Tom Conti) visita na prisão Hara, o antigo capataz (Takeshi Kitano) do campo de prisioneiros japonês em que ficou encerrado durante a Segunda Guerra. O japonês será executado no dia seguinte como criminoso de guerra. Nessa despedida, os dois rememoram os tempos no campo, em especial um Natal em que Hara ficou bêbado. Desnecessário dizer que a música de Ryuichi Sakamoto tem aqui um papel tão fundamental quanto a de Nino Rota no trecho citado de Amarcord.

 

 

Talvez se possa incluir na antologia a cena crucial de Rastros de ódio (John Ford, 1956) em que o amargurado veterano da Guerra Civil Ethan Edwards (John Wayne) encontra a sobrinha (Natalie Wood) raptada pelos comanches, depois de procurá-la durante anos América afora. Criada pelos índios, ela se tornou um deles. Dado o ódio mortal de Ethan aos peles-vermelhas, teme-se que ele a mate. O gênio de John Ford faz com que cenas de crescente tensão e violência desemboquem neste momento sublime.

 

 

Culturas distintas

Quando se fala de encontro entre culturas distintas, e do sentimento humano capaz de transcender diferenças, é impossível não pensar em Dersu Uzala (Akira Kurosawa, 1973), história da amizade entre um capitão e explorador russo (Yuriy Solomin) e um caçador solitário da Sibéria (Maxim Munzuk). Depois de anos afastados, eles se reencontram durante uma expedição do capitão com seus homens. Como sempre, a música, desta vez cantada em coro, sela o instante de comunhão.

 

https://www.youtube.com/watch?v=3mekpxGMcw0

 

A música é também o fio que conduz um dos encontros mais belos do cinema brasileiro, aquele entre o sambista de morro vivido por Grande Otelo e a já consagrada cantora Angela Maria, em Rio, zona norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957). Ele leva a ela um samba seu, rabiscado num papel, e o resto a música (de Zé Keti, no caso) se incumbe de fazer. O sorriso de Grande Otelo vale por uma revelação divina.

 

 

E o que dizer do final de Ata-me (Pedro Almodóvar, 1989), em que estão juntos no mesmo carro Marina (Victoria Abril), o homem que a sequestrou e manteve em cárcere privado (Antonio Banderas) e a irmã de Marina (Loles León)? Ao som da versão espanhola de I will survive, que cantam junto com o rádio, eles celebram um afeto até então improvável e a aposta radical na vida, tão característica de Almodóvar.

 

 

Um sentimento análogo talvez seja o do desfecho de Noites de Cabiria (Fellini, 1957), em que a protagonista, depois de roubada e quase morta pelo vigarista que ela amava, encontra na estrada um grupo de jovens festeiros que a envolvem com seus instrumentos, seu canto e sua dança. Embalado pela música de Nino Rota, o movimento todo da cena em torno do sorriso e das lágrimas de Giulietta Masina é algo que fica entranhado para sempre na memória afetiva.