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Ridículos tiranos

09 de abril de 2020

Em nossa estranha época, estamos presenciando, entre outras coisas, um inesperado ressurgimento de ditadores bizarros, de caricatura, que desdenham das conquistas da civilização e incentivam um culto irracional a sua própria personalidade. Parecem saídos de esquetes humorísticos, antologias do folclore político ou... das telas de cinema. São estes últimos, isto é, os tiranos de celuloide, que nos interessam aqui.

A galeria cinematográfica dos ditadores insanos é inesgotável. Não me refiro aos documentários, nem às ficções mais ou menos realistas protagonizadas por personagens históricos, como Vincere (sobre Mussolini), A queda! (sobre Hitler) ou A morte de Stalin, mas apenas às obras de imaginação, em geral satíricas, que engendraram autocratas grotescos, delirantes, que levam ao paroxismo o ridículo de seus congêneres de carne e osso.

Um bestiário desse tipo poderia começar com o impagável Rufus T. Firefly (Groucho Marx), que se torna governante da pequena Freedonia ao seduzir a milionária viúva do ex-presidente do país, em O diabo a quatro (Leo McCarey, 1933). Completamente inepto e amalucado, ele leva o país a uma guerra absurda com a vizinha Sylvania, com a valiosa contribuição de dois espiões trapalhões da nação rival (Chico e Harpo Marx). Aqui, a sequência em que Freedonia declara guerra a Sylvania.

 

 

Obra-prima do humor anárquico dos Irmãos Marx, o filme curiosamente veio à luz no mesmo ano da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha. O próprio führer seria o modelo evidente de Charlie Chaplin na criação do risível Hynkel, da Tomania, no clássico O grande ditador (1940), realizado numa época em que Hollywood ainda estava cheia de dedos para abordar o nazismo, o que impedia os filmes de usarem o nome real dos lugares e personagens.

Chaplin, que acusava Hitler de ter roubado seu bigodinho, encarna no filme dois personagens, o próprio Hynkel e seu sósia, um barbeiro judeu que toma seu lugar num momento crucial. Nessa sátira demolidora há lugar também para Napaloni (Jack Oakie), ditador de Bacteria, obviamente calcado em Mussolini. É célebre, para não dizer surrado, o discurso humanista final proferido pelo barbeiro, mas certamente Hitler deve ter-se irritado mais ainda com o discurso do próprio Hynkel, num hilário alemão “embromation” que não quer dize nada.

 

https://www.youtube.com/watch?v=o61pWzvQMsU

 

Sósias de tiranos

A ideia do sósia que toma o lugar do tirano com consequências imprevistas era tão fecunda que foi repetida pelo menos duas vezes: em Luar sobre Parador (Paul Mazursky, 1988) e em O ditador (Larry Charles, 2012), comédias que estão evidentemente a anos-luz dos dois exemplos anteriores.

A primeira, uma farsa ambientada em Parador, república bananeira do Terceiro Mundo, foi rodada predominantemente em Ouro Preto e conta com elenco multinacional (Richard Dreyfuss, Sonia Braga, Raul Julia, Fernando Rey, Milton Gonçalves). Dreyfuss é Jack Noah, um ator nova-iorquino que está fazendo uma ponta num telefilme em Parador quando o ditador local, Alphonse Simms, morre de ataque cardíaco. Sequestrado pelo serviço secreto do país, o ator tem que passar a encarnar o presidente, escondendo do povo a sua morte.

No começo, Noah acha divertido imitar o tirano e exercer o mando, mas o país está agitado por uma revolta popular e ações de guerrilha, e ele conhece um pouco mais da realidade dura de Parador por intermédio da amante, ironicamente chamada Madonna Mendez (Sonia Braga). É, em suma, uma sessão da tarde temperada de sátira política.

O ditador investe em personagens e situações ainda mais alopradas e caricaturais. O narcísico almirante-general Haffaz Aladeen (Sacha Baron Cohen) exerce seu despotismo sobre Wadiya, república imaginária do norte da África. Cercado de guardas-costas mulheres, ele realiza suas olimpíadas pessoais (das quais sai sempre vencedor) e desenvolve armas nucleares para destruir Israel. Ameaçado de sanções internacionais, Aladeen viaja a Nova York para falar na ONU, mas é sequestrado por conspiradores, que colocam em seu lugar um sósia abobalhado que deve assinar um tratado em defesa da democracia. Assim como em Luar sobre Parador, aqui também uma amante defensora dos direitos humanos tem ação decisiva sobre o ditador de plantão.

 

 

Alegorias sombrias

Mas os déspotas bizarros não povoam apenas comédias malucas. Uma das alegorias mais sombrias de Glauber Rocha, Cabeças cortadas, rodada na Espanha em 1970, é um longo delírio de um ditador no exílio, Díaz II (Francisco Rabal), que em seu castelo solitário relembra seus tempos de poder absoluto em Eldorado, republiqueta do Terceiro Mundo.

Eldorado é também o país latino-americano imaginário em que se passa a obra-prima de Glauber, Terra em transe (1967), que tem com um dos personagens cruciais o líder messiânico de extrema-direita Porfirio Diaz (Paulo Autran), coroado imperador no auge da crise de poder no país. De certo modo, Diaz pode ser visto como uma prefiguração sinistra do que temos visto à nossa volta – ou antes, em cima de nós. Aqui, o discurso horripilante da coroação:

 

 

O distanciamento histórico permitiu que alguns tiranos que marcaram época fossem tratados quase como personagens lendários, de contos fantásticos. Um caso singular é o de Ivan, o terrível, filmado em duas partes por Sergei Eisenstein em 1944. Inspirado na história do soberano moscovita que se tornou o primeiro “czar de todas as Rússias” em 1547, o filme era uma referência mais ou menos evidente a Stalin e seu esforço de unificação nacional para enfrentar a Alemanha na Segunda Guerra. Mas, na segunda parte, o delírio de poder de Ivan, sua paranoia contra conspiradores à sua volta e sua violência implacável desagradaram o ditador soviético, e o filme só foi visto em sua completude em 1958, cinco anos depois da morte de Stalin e dez anos depois da de Eisenstein. As duas partes, ambas esplendorosas, estão disponíveis, legendadas, no Youtube. A primeira:

 

https://www.youtube.com/watch?v=2cyCHgJyp28&t=567s

 

E a segunda:

 

 

Um tirano diferente, mais autodestrutivo do que propriamente opressor, é o retratado em Ludwig: a paixão de um rei (1973), de Luchino Visconti. É a história do desafortunado Ludwig II da Baviera, que reinou entre 1864 e 1886, época em que a Alemanha vivia um processo de unificação de seus vários reinos, sob a égide da Prússia. A suntuosidade barroca de Visconti se casa à perfeição com a trajetória desse monarca esteta e insano (vivido por Helmut Berger) que, enquanto o mundo desmoronava ao seu redor, gastava rios de dinheiro construindo castelos fabulosos ou patrocinando a carreira de Richard Wagner, debatendo-se entre os impulsos homoeróticos e o apego à fé cristã. Aqui, sob a música de Wagner, um dos momentos mais operísticos do filme, estetização absoluta da vida do rei:

 

Talvez tão interessante quanto essa variada fauna de ditadores excêntricos seja uma pequena parábola felliniana que esboça uma espécie de genealogia da ditadura. Refiro-me a Ensaio de orquestra (Fellini, 1978), encenado como um falso documentário sobre músicos experientes que se reúnem num oratório para ensaiar, sob a batuta de um regente alemão (Balduin Baas). Um ambiente aparentemente harmônico, coeso, vai revelando aos poucos suas fissuras e contradições, com cada instrumentista defendendo seus interesses e querendo se destacar sobre os demais, até que se instaura o caos e o maestro alemão, para impor a ordem acima de tudo, revela suas garras de guia, condutor, timoneiro, Führer. Numa palavra, ditador.