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Nossa própria imagem, um espelho de beleza: os filmes de Camille Billops e James Hatch

11 de março de 2024

Sempre digo às pessoas que a coisa mais revolucionária que você pode fazer é um livro sobre sua vida. Não deixe ninguém chamar isso de imprensa da vaidade. Basta fazer essa coisa magnífica e colocá-la no melhor papel que puder encontrar. Coloque todos os seus amigos, todos que você amou, e faça muitas cópias, para que um dia eles te encontrem e saibam que vocês estiveram todos aqui juntos. 

- Camille Billops, em uma entrevista de 1996 com a autora e professora bell hooks[1]

 

Aaron Cutler e Mariana Shellard (curadores da Sessão Mutual Films)

Após passarem quase uma década dando aulas e produzindo peças teatrais pela África e Ásia, a artista Camille Billops e o teatrólogo James Hatch se estabeleceram, em 1973, em um espaçoso loft no SoHo em Nova York. Foi ali que o casal norte-americano desenvolveu o mais longo projeto de suas vidas, um arquivo voltado para a arte negra norte-americana. Billops disse subsequentemente, como justificativa do esforço, que “é importante que escrevamos nossa própria história... Caso contrário, dirão que nunca estivemos aqui.”[2] A Coleção Hatch-Billops, uma das maiores e mais importantes do gênero nos Estados Unidos, possui mais de 5.000 documentos, entre livros, cartas, roteiros e pôsteres pertencentes à literatura, ao teatro e às artes visuais realizados por artistas negros no século XX.

Billops e Hatch também colecionaram mais de 10.000 fotografias que documentam a cena artística negra norte-americana e realizaram mais de 400 entrevistas com artistas, que foram todas gravadas no apartamento. Em 1981, as entrevistas se tornaram a base de uma publicação anual impressa, chamada Artist and Influence: The Journal of Black American Cultural History [Artista e influência, o jornal da história cultural afro-americana], que durou até 1999. Embora o casal tenha registrado conversas com figuras celebradas, como o poeta Amiri Baraka e os pintores Faith Ringgold e Jacob Lawrence, a grande maioria dos entrevistados era desconhecida do público em geral. O que mais importava era o trabalho e a sensibilidade da pessoa que seria entrevistada.

As atividades de Billops com o trabalho de arquivo também incluíram sua colaboração com James Van Der Zee e Owen Dodson no livro The Harlem Book of the Dead (1978), que registrou ritos funerários no bairro epônimo nova-iorquino (com um prefácio escrito por Toni Morrison). Desde cedo, ela se interessou pelo registro das pessoas e da cultura ao seu redor. Billops nasceu em 1933 em Los Angeles e cresceu em uma família que migrou do sul dos Estados Unidos (sua mãe era de Carolina do Norte, e seu pai, do Texas) durante a Grande Migração de pessoas negras, na primeira metade do século XX, em busca de melhores condições de vida. Camille e sua irmã Billie foram educadas por sua mãe, Alma, em um ambiente tradicional de classe média. “Se tornou importante para mim, ao menos, subconscientemente, observar meus pais fazendo filmes caseiros entre o final dos anos 1940 e 1970”[3], a pintora e escultora falou anos depois.

Ela conheceu James Hatch no final da década de 1950 através de sua meia-irmã Josie, que tinha sido aluna dele na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), onde ele trabalhava como professor de teatro. Hatch nasceu em 1928 em uma pequena cidade no estado de Iowa, no centro-oeste dos EUA, em um ambiente quase exclusivamente branco e cristão. Desde cedo, ele expressou interesse em descobrir culturas diferentes daquela de sua educação provincial, e chegou a enxergar a cultura negra como uma fonte especialmente inesgotável. Como pesquisador e professor universitário, Hatch escreveu e coescreveu 12 livros sobre artistas, escritores e dramaturgos negros. Sempre que era questionado sobre seu interesse em apresentar uma história que não era sua, ele gostava de responder: “Estou tentando aprender, você pode me ajudar!”.[4]

Quando Hatch e Billops se conheceram, ele estava montando uma peça musical de sua própria autoria (em parceria com C. Bernard Jackson), chamada Fly Blackbird, sobre o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, e escalou sua futura companheira para fazer parte do coro. Ela logo convidou Hatch para conhecer seus trabalhos em cerâmica, e ele se tornou a primeira pessoa a afirmar que ela era uma boa artista.

Na época, Billops lecionava no sistema público de educação e trabalhava em um banco para poder seguir com seus estudos na Los Angeles State College e sustentar sua filha Christa – uma criança de dois anos cujo pai havia abandonado Billops quando ainda estava grávida, durante o planejamento do casamento. Billops acreditava firmemente que não tinha condições de ser uma boa mãe. Ela tentava conciliar sua educação familiar com o impulso artístico, porém, conforme o relacionamento com Hatch evoluía, e com integral apoio dele às suas ambições criativas, em 1961 ela entregou sua filha para adoção e viajou para o Egito com seu novo amor, que havia recebido uma bolsa para lecionar no Instituto de Cinema do Cairo. Hatch também se entregou inteiramente ao relacionamento e deixou para trás sua esposa e dois filhos. “Nós escolhemos um ao outro e embarcamos em uma nova vida”, Billops falou depois. “Foi quando o mundo se abriu.”[5]

Os anos vividos no exterior – que, além do Egito, também incluíram Malásia, Taiwan, Sri Lanka, Tailândia e Índia entre as paradas – alimentaram o trabalho artístico e intelectual do casal. (Foi no Egito, por exemplo, que Billops teve sua primeira exposição individual.) Porém, quando retornaram para os Estados Unidos, em 1965, encontraram enorme dificuldade para acessar o mundo das artes, em consequência do persistente racismo que perdurava no país. Para reverter essa situação, Billops participava de coletivos de mulheres negras artistas, e, em pouco tempo, ela e Hatch se organizaram e passaram a realizar encontros e exposições em sua nova cidade, onde trabalharam como professores universitários na City College of New York. Essas reuniões de artistas foram o embrião do que se tornaria a Coleção Hatch-Billops, e também contaram com muitos amigos do casal que apareceram em seus filmes.

No final da década de 1970, como uma espécie de desdobramento de seus trabalhos artísticos e arquivísticos, o casal começou a documentar a família de Billops, ainda baseada em Los Angeles. Eles partiram da sobrinha Suzanne, seu trauma por ter sido fisicamente abusada pelo falecido pai, Brownie, durante a infância e a luta contra o vício em heroína, assim como suas relações com seu irmão Michael e sua mãe Billie. O resultante curta-metragem documental em preto e branco, Suzanne, Suzanne (1982), foi bem recebido em festivais. Quando Billops foi questionada sobre a franqueza com que seus parentes se expõem para a câmera, ela disse: “Para eles, eu era sua cineasta particular. Eles vinham a mim e diziam: ‘Bem, eu não recebi meu filme’.”[6]

Suzanne, Suzanne também representou uma espécie de reunião familiar mais ampla para os diretores. O cinegrafista convidado para fotografar o filme foi Dion Hatch, filho de James, que também fotografou quatro dos cinco filmes subsequentes realizados por seu pai e pela madrasta. A trilha sonora foi composta pela cantora Christa Victoria, a filha agora adulta de Billops, que achou sua mãe e propôs um reencontro em 1981. A melancólica música principal do filme foi até cantada em um dueto entre as duas, estabelecendo uma parceria que foi, além de familiar, criativa.

Christa também apareceu em cenas do curta-metragem Mulheres mais velhas e o amor (Older Women and Love, 1987), que toma uma festa realizada no apartamento de Billops e Hatch como ocasião para absorver as histórias de mulheres que se envolvem com homens mais jovens. Com um movimento fluido e descontraído, passando por entrevistas com mulheres e homens sobre suas experiências amorosas, a encenação da festa cheia de anedotas e uma performance musical da cantora e amiga Patty Bown, Billops e Hatch se distanciaram da abordagem utilizada em Suzanne, Suzanne e estabeleceram um estilo que seria aprofundado nos seus outros filmes. “Jim e eu conversamos em um vai e vem”, Billops falou em uma entrevista realizada logo após seu filme seguinte, o média-metragem Encontrando Christa (Finding Christa, 1991). “Nós seguimos contando a história um para o outro, até surgir algo.”[7]

James Hatch e Camille Billops

Encontrando Christa (com o qual a artista se tornou a primeira mulher negra a ganhar um prêmio principal no Festival de Sundance) retoma o tema dos laços familiares no clã de Billops, como a segunda parte de uma eventual trilogia. Embora inicialmente pareça ter um tom mais leve do que o de Suzanne, Suzanne, o filme acaba sendo extremamente intenso, devido à sua dimensão pessoal, na qual Camille expõe sua própria história sobre o abandono de sua filha. Mas, embora seja repleto de entrevistas sinceras e imagens de filmes caseiros, a maior parte do documentário (elaborado entre Billops, Hatch e Christa ao longo de uma década) se passa em um fictício momento presente, onde as personagens principais buscam curar suas diversas feridas – a culpa de Billops por ter abandonado Christa, a angústia da mãe adotiva de perder a atenção de sua filha para uma nova rival e a sede constante pelo amor e pela intimidade que Christa busca saciar. Com estilo brincalhão e ácido, o filme apresenta elementos de fantasia e performance para comentar a realidade – por exemplo, no reencontro inicial entre mãe e filha, em que a jovem é revelada como a acompanhante musical por sua surpreendida mãe dançarina. A maneira na qual Encontrando Christa lida com o trauma cria um duplo sentido comovente – da vida como as protagonistas a percebem e, também, como elas desejam que seja.

Ainda com uma abordagem confessional e aprofundando o estilo teatral e fantasioso, o filme subsequente de Billops e Hatch – o longa-metragem A butique KKK não é apenas de caipiras (The KKK Boutique Ain’t Just Rednecks, 1994) – também funciona como um retrato da relação amorosa, bem-humorada e mutualmente nutritiva dos cineastas. O filme híbrido se desenvolve como o que Hatch chama em uma cena inicial de uma “docufantasia sobre as maneiras em que o racismo transforma nossas almas”, que conta com cenas de depoimentos íntimos, declamações de poesia e reuniões carnavalescas que são frequentemente inspiradas nas experiências vividas pelos participantes (entre eles, o renomado diretor de teatro George C. Wolfe, a própria Christa e diversos outros amigos e parentes do casal). Hatch e Billops aparecem tanto para encarnar visões grotescas de racismo quanto para falar de forma franca sobre a experiência de discriminação em suas próprias vidas. Em uma das várias cenas em que eles aparecem juntos em um campo de girassóis, os diretores dizem que o preconceito que enfrentaram como um casal inter-racial relaxou com a idade e o tempo. Hatch comenta que, conforme seus cabelos se tornaram grisalhos, a noção de “propriedade” sobre a cor da pele foi desaparecendo.

Na mesma cena, Billops se refere a ela e Hatch como “transgressores de barreiras”, uma autodenominação relevante tanto às suas histórias pessoais quanto às suas buscas artísticas. Ela mais uma vez misturou os dois no curta-metragem Pegue suas malas (Take Your Bags, 1998), no qual descreve o transporte de africanos escravizados ao “novo mundo” para um jovem parente como se fosse uma fábula. Ela e o menino Keita Omawale Erskine aparecem sobre um fundo vermelho de forma elegantemente fotografada pelo cinegrafista Ronald K. Gray (colaborador de outras cineastas negras norte-americanas, como Ayoka Chenzira e Kathleen Collins). Um dos momentos mais potentes do filme discute a apropriação pelos artistas europeus canônicos (como Matisse e Picasso) de imagens africanas: a representação dessas obras se dá por uma tela preta com a mensagem “permissão negada”, sugerindo que o filme não teria autorização para mostrá-las. Porém, com essas palavras, o próprio filme também se nega a mostrar o que foi roubado e, no seu lugar, traz as imagens originais de esculturas e máscaras africanas.

O jovem Keita também aparece no último filme dirigido por Billops e Hatch, um documentário de média-metragem que lida com o empobrecimento contínuo dos homens negros nos Estados Unidos. Um colar de pérolas (A String of Pearls, 2002) foi idealizado pelo casal como a última parte da trilogia familiar que começou com Suzanne, Suzanne e Encontrando Christa. As filmagens, que foram iniciadas em 1979 e concluídas mais de 20 anos depois, se debruçam sobre os homens da família de Billops, a partir de um comentário feito por sua irmã Billie a respeito de sua tendência a se concentrar nas mulheres. Através de muitas conversas e entrevistas com os parentes de Billops filmadas em 16 mm e em vídeo, tomamos contato com uma realidade persistentemente difícil, especialmente para os novos pais e trabalhadores. Mais sóbrio e solto que os filmes anteriores do ciclo, Um colar de pérolas usa a família da cineasta para projetar a condição do homem negro norte-americano ao longo de várias décadas – e, talvez inevitavelmente, com um olhar preocupado com o futuro.

Billops e Hatch faleceram respectivamente em 2019 e em 2020, deixando um filme inacabado chamado Mama and Papa Lala, um autorretrato do relacionamento deles. Embora os dois tenham sofrido de demência em seus últimos anos, conseguiram deixar seu acervo com colegas interessados. A maior parte da Coleção Hatch-Billops foi doada em 2013 à Emory University, em Atlanta, onde eles foram professores.[8] Os materiais e direitos de seus filmes ficaram com a distribuidora Third World Newsreel, uma entidade nova-iorquina focada em filmes realizados por autores de vozes minoritárias e cuja diretora executiva, J.T. Takagi, trabalhou como captadora de som nas filmagens de algumas das obras. Um projeto de digitalização dos filmes foi logo iniciado, e a retrospectiva completa (que contou com uma restauração em 4K de Suzanne, Suzanne) fez um tour nos Estados Unidos em 2023. Ela agora está viajando pelo mundo.

A Sessão Mutual Films de março de 2024 é dedicada à memória da ativista, cineasta e professora alemã Renate Sami (1935-2023).

 

Nossa própria imagem, um espelho de beleza: os filmes de Camille Billops e James Hatch

 


 

[1] Citado em inglês no livro de hooks Reel to Real: Race, Class and Sex at the Movies, de 1996.

[2] Citado em inglês no artigo The Artist Who Gave Up Her Daughter, de Sasha Bonét, publicado em Topic Magazine poucos meses antes da morte de Billops, em 2019.

[3] Citado em inglês na entrevista com bell hooks.

[4] Entrevista Camille Billops and Jim Hatch - Archivists disponível no YouTube (em inglês).

[5] Citado em inglês no artigo de Sasha Bonét.

[6] Citado em inglês na entrevista com bell hooks.

[7] Citado em inglês em uma entrevista com Billops e Hatch de 1992 que foi realizada por Ameena Meer para a Bomb Magazine.

[8] Uma pequena seleção das obras pode ser encontrada online, no site da universidade.