Os novos filmes brasileiros que estavam previstos para lançamento este ano começam a chegar ao streaming, na falta de salas de cinema em funcionamento. Entre eles há um que é particularmente oportuno: o documentário Não toque em meu companheiro, de Maria Augusta Ramos, disponível nas plataformas NetNow, Oi Play, Vivo Play, FilmeFilme e Looke.
O ponto de partida é uma greve histórica realizada por funcionários da Caixa Econômica Federal em 1991, mas com grande habilidade a diretora (a mesma dos impactantes Justiça, Juízo, Futuro junho e O processo) faz do evento um gancho para discutir as transformações no mundo do trabalho e nas relações políticas nos últimos trinta anos.
O eixo principal da narrativa é simples: com base em registros da época e nas reminiscências dos próprios participantes, reconstitui-se aquele movimento singular. Ficamos sabendo então que, por mais de um ano, os 110 funcionários demitidos da Caixa devido à greve foram sustentados por 35 mil colegas de todo o país, que para isso concordaram em deduzir mensalmente uma fração mínima de seu salário (0,3%).
Essa demonstração impressionante de organização e solidariedade teve um desfecho feliz: com a deposição de Fernando Collor e a mudança do clima político em 1992, os demitidos foram recontratados.
O esquema geral lembra um pouco o do belo documentário Peões (2004), de Eduardo Coutinho, que foi em busca de participantes das greves no ABC do final dos anos 1970, nas quais despontaram Lula e outros líderes sindicais e políticos. Ali também ficavam evidentes as transformações das relações trabalhistas e do movimento sindical nas últimas décadas.
Enfraquecimento do coletivo
Menos rigoroso, e em alguns momentos quase dispersivo, o filme de Maria Augusta se espraia porém para outros temas, todos interligados: o papel social de um banco público, a precarização do trabalho, o enfraquecimento dos sindicatos e o consequente esgarçamento da ação coletiva, o triunfo do neoliberalismo selvagem, os paralelos e diferenças entre o populismo de Collor e o de Bolsonaro.
Vemos, entre outras coisas, uma “agência-barco” que leva os serviços bancários básicos a populações ribeirinhas da Amazônia, e uma entrega de chaves de apartamentos populares financiados pela Caixa – exemplos de papeis sociais que dificilmente seriam desempenhados, nas mesmas condições, por bancos privados.
Além dos registros de arquivo e dos depoimentos dos funcionários e ativistas sindicais, o sentido mais geral é dado por dois “explicadores”: a filósofa Marilena Chauí, numa aula pública sobre a construção das imagens de Collor e de Bolsonaro, e o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, num depoimento para a câmera.
Marilena Chauí verifica que hoje predomina desde a infância uma educação para a competição, com a consequente dissolução da consciência coletiva. “Ao reduzir o espaço público dos direitos, o neoliberalismo apunhala o coração da democracia”, sentencia a filósofa.
Belluzzo, por sua vez, destaca o papel que os bancos públicos desempenharam no desenvolvimento econômico e social do país, e aponta o perigo que esses bancos sofrem num contexto de radicalização do discurso neoliberal, que prega a flexibilização do mercado de trabalho, a redução do estado e a privatização dos serviços. É nesse contexto que o funcionalismo público é desvalorizado, quando não estigmatizado.
Segundo o economista, não há contradição no fato de o governo Bolsonaro ser retrógrado quanto aos costumes, autoritário em suas práticas e, ao mesmo tempo, agressivamente liberal na economia. “Os grandes papas do liberalismo radical, Hayek, Friedman e outros, apoiaram vivamente o regime de Pinochet.”
Trata-se, portanto, de um documentário fortemente político, que toma partido de uma concepção social do estado, na qual a economia deve servir ao bem-estar dos cidadãos, e não o contrário. Mas o tom geral não é de libelo, e sim de elegia. Não por acaso o filme não se encerra com uma marcha triunfal, mas com os acordes plangentes de uma Variação Goldberg de Bach, no piano de Glenn Gould. O que predomina é a melancolia da dissolução dos laços de solidariedade num mundo cada vez mais individualista e competitivo.
Touche pas à mon pote (Não toque no meu chapa) era o slogan oficial da associação SOS Racisme, surgida na França em 1985 para combater a discriminação racial e a xenofobia. Gilberto Gil fez uma bela canção com esse mote. O lema serviu também à greve dos bancários de 1991 retratada no documentário de Maria Augusta Ramos. Hoje se diz “ninguém solta a mão de ninguém”. Mas será que essa bela ideia ainda tem a mesma força?