Espremido entre o Festival do Rio, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (que começa na próxima semana) e os blockbusters de sempre, corre o risco de passar despercebida uma pequena joia: Nostalgia, de Mario Martone, que foi o concorrente italiano a uma vaga no Oscar deste ano.
Ambientado em Nápoles, especialmente em suas ruas mais pobres e violentas, o filme é um misto de crônica social realista e parábola ético-espiritual. O cinquentão Felice Lasco (Pierfrancesco Favino), engenheiro e construtor bem estabelecido no Cairo, volta depois de quarenta anos a sua cidade natal para visitar a mamma velhinha e rever os lugares da sua infância e adolescência.
Bairro devastado
O que ele encontra nesse retorno é um bairro (La Sanità) turbulento e devastado, em que gangues juvenis percorrem as vielas de motocicleta tocando o terror, e onde esplêndidos palácios renascentistas se converteram em cortiços. O chefão dos jovens delinquentes é o temido Oreste Spasiano (Tommaso Ragno), conhecido como Malvado. Na adolescência, ele foi o amigo inseparável de Felice. Os dois não se veem desde que tinham quinze anos, quando viveram um acontecimento traumático que só se esclarecerá ao longo da narrativa.
O grande adversário de Oreste na região é Dom Luigi (Francesco Di Leva), um padre progressista empenhado em salvar do crime os meninos e meninas do bairro por meio dos esportes e das artes. O drama moral, sentimental e espiritual de Felice é estar entre esses dois polos.
O feito essencial de Nostalgia, a meu ver, é combinar organicamente três focos de interesse. O primeiro é o motivo, recorrente na literatura desde a antiguidade, do embate entre dois amigos fraternos que a vida apartou. No cinema, dois exemplos vêm imediatamente à lembrança: Ben-Hur (William Wyler, 1959) e Sobre meninos e lobos (Clint Eastwood, 2003), além de inúmeros faroestes.
O segundo tema que se impõe no filme é o da religiosidade como inspiração para a fraternidade e para a tolerância. Felice, em seus longos anos em países árabes, converteu-se ao Islã, mas isso não o impede de se envolver com a atividade pastoral de Dom Luigi.
Visão ecumênica
Duas sequências são particularmente reveladoras da visão ecumênica e humanista do filme. Numa delas, uma jovem historiadora saída da favela com a ajuda do padre leva Felice a uma excursão às catacumbas dos primeiros cristãos no seio do Império Romano e ilumina com a lanterna um afresco de uma mulher africana do século V. Vale por uma epifania.
Em outra passagem, já enturmado com os rapazes e moças da paróquia, muitos deles imigrantes pobres de vários continentes, Felice dança com eles uma música árabe plena de alegria e sensualidade. É quase uma utopia concentrada. Numa época conturbada pelo fanatismo e a pela intolerância, não é pouca coisa.
Há ainda uma remissão enviesada à iconografia cristã. A cena delicada e comovente em que Felice dá banho na mãe (“como você fazia comigo quando eu era um menino”) é como uma “Pietà” invertida.
Por fim, há a questão da nostalgia em si. Encarada friamente, a nostalgia – celebrada na palavra saudade pela tradição luso-brasileira – parece ser vista aqui como um sentimento conservador e traiçoeiro, que tende a edulcorar o passado e impedir o sujeito de seguir em frente. Ao comprar uma moto de segunda mão para reviver a sensação de liberdade e potência experimentada na juventude, Felice não demora a perceber que tudo mudou. O mundo ao seu redor, e ele próprio, nunca mais serão os mesmos.
Do ponto de vista da encenação, é notável como o diretor consegue transmitir discretamente o sentimento ambíguo do protagonista, para quem as ruas de sua cidade são ao mesmo tempo familiares e estranhas, acolhedoras e perigosas. Merece destaque também o modo como o temido Oreste é uma “presença ausente”, aludida todo o tempo, mas que só aparece de verdade no último quarto do filme, com uma dimensão simultaneamente mítica e prosaica. Um “anjo da morte” de periferia, talvez o personagem mais trágico desse belo filme.