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O ano em que viveremos em perigo

03 de janeiro de 2019

O ano que se inicia traz uma série de inquietações para quem faz, consome e pensa o cinema no Brasil. De todas as artes, o cinema talvez seja aquela atravessada de modo mais imediato pelas tensões e contradições de seu tempo, a mais vulnerável aos estilhaços da história. E alguns sinais são preocupantes.

Há, por um lado, um desempenho frustrante dos filmes brasileiros na bilheteria. Os números são desanimadores. O grande circo místico, coprodução internacional de Cacá Diegues, que estreou com pompa e circunstância no festival de Cannes e tem lançamento garantido em vários países europeus, alcançou pouco mais de cinquenta mil espectadores no Brasil. Muito pouco para um filme que custou cerca de R$ 12 milhões e foi lançado em mais de cem salas.

Outros longas-metragens supostamente com bom potencial de público também decepcionaram na bilheteria: Chacrinha, o velho guerreiro, de Andrucha Waddington, sobre um dos personagens mais populares do país, foi visto por menos de quarenta mil pessoas. Beijo no asfalto, a versão de Murilo Benício para a célebre peça de Nelson Rodrigues, ficou abaixo dos dez mil.

Produção desperdiçada

Claro que essa baixa performance das produções nacionais tem mais a ver com a estrangulação do mercado exibidor – em que muitas vezes um único título estrangeiro ocupa mais de mil salas – e com outros fatores, como o preço do ingresso, a concentração dos cinemas em shoppings e multiplexes e as dificuldades de locomoção e segurança nas cidades. Claro também que muitos dos filmes acabam encontrando outros meios de chegar ao público e/ou cobrir seus custos (mercado externo, televisão, VOD, streaming, DVD etc.). Mas o fato é que muita coisa boa e relevante produzida no país está sendo subaproveitada, para não dizer desperdiçada.

No atual contexto político-cultural, em vez de esses problemas serem equacionados por uma política global para o setor, que contemple da produção à exibição, além da relação com outras mídias, a tendência é cair no sofisma mais fácil (e burro): “se esses filmes são pouco vistos, então não merecem ser feitos”. O corolário desse raciocínio pobre, que não está muito distante da ideia triunfante de que todo artista é vagabundo e todo conhecimento é potencialmente perigoso, é desestimular a produção independente, ou seja, aquela que se distancia do padrão hollywoodiano-televisivo e não atrai milhões de espectadores.

Sem cota, sem tela

Este ano, pela primeira vez em sete décadas, não foi renovada a “cota de tela”, isto é, o mínimo de dias de exibição obrigatória de filmes brasileiros nos cinemas. A política desenvolvida na última década pela Ancine, que bem ou mal propiciou o florescimento de uma produção geograficamente descentralizada, tematicamente plural e socialmente inclusiva, está ameaçada de desmonte “por dentro”, dada a predominância do mais rasteiro raciocínio contábil, o da relação custo/benefício em termos meramente quantitativos, quando na verdade a atividade cultural deveria se pautar por outros parâmetros.

Os mecanismos de incentivo, como a Lei Rouanet, estão sob constante bombardeio e tentativa de desmoralização. O Ministério da Cultura foi extinto e a “área econômica” ameaça cortar até 50% das verbas do chamado “sistema S”, que inclui instituições culturalmente fecundas, como o Sesc, o Sesi, o Senai e o Senac.

Enfim, o quadro é inquietante. E nem falamos da censura ideológica que paira de várias maneiras sobre a produção artística, científica e acadêmica – com ataques a universidades, teatros e exposições de arte. Os novos tempos são inimigos da sensibilidade e da inteligência, e mais ainda da liberdade de criação. Um moralismo retrógrado, baseado num tosco fundamentalismo religioso, torna suspeita e perigosa toda a produção do imaginário.

Será interessante observar como será, nesse contexto que inclui um anacrônico e rasteiro anticomunismo, a repercussão de um filme como Marighela, a estreia de Wagner Moura na direção, cinebiografia do líder comunista baiano que pegou em armas contra a ditadura militar. É o ator brasileiro de maior prestígio internacional cutucando com vara curta a onça do obscurantismo.

Querido filho

Dito isso, vamos aos filmes, pois o bom cinema resiste, e nós junto com ele.

Entrou em cartaz esta semana um belo filme tunisiano, Meu querido filho, de Mohamed Ben Attia. Longe do que poderia sugerir o título, não se trata de um melodrama familiar convencional, mas de uma obra enxuta, precisa e sutil sobre um rapaz de classe média (Zacaria Ben Ayyed) que some de casa quando está prestes a entrar na faculdade.

A obstinada busca de seu pai (Mohamed Dhrif), tanto para encontrar como para compreender o filho, é compartilhada pelo espectador numa narrativa elíptica, feita de planos com a composição e a duração exatas para potencializar seu sentido para a trama ou para a caracterização dos personagens.

Os diálogos são escassos; as explicações, ausentes; a música, quase neutra. O espectador é chamado a preencher os espaços vazios. Ben Attia recusa o sentimentalismo e a espetacularização. É um filme que fala de terrorismo sem recorrer a nenhuma explosão, nenhum tiro, nenhuma gota de sangue, e que fala de relações humanas dilaceradas sem transbordar em lágrimas e em música enfática.

Scorsese

Pelo menos os cinéfilos cariocas têm motivos para se alegrar. O Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro exibe até o próximo dia 21 uma grande retrospectiva da obra de Martin Scorsese, um dos mais importantes cineastas norte-americanos contemporâneos. São ao todo trinta e três filmes, incluindo todos os seus 25 longas de ficção, além de curtas e documentários.

É uma oportunidade para ver ou rever suas obras mais consagradas, como Taxi driver e Touro indomável, mas também para conhecer títulos menos vistos, como os seus primeiros longas, Quem bate à minha porta? (1967) e Sexy e Marginal (1972), realizados imediatamente antes de sua fase mais potente, que vai de Caminhos perigosos (1973) a Os bons companheiros (1990). Obras que ficaram injustamente em segundo plano em seu tempo, como O rei da comédia (1982) e Depois de horas (1985), revelam uma atualidade e uma vitalidade impressionantes.

Jodie Foster e Robert De Niro em Taxi driver, de Martin Scorcese

Se o universo mais fecundo do diretor é o submundo de Nova York, ele não deixou de experimentar, com resultados variados, um sem-número de temas, gêneros e ambientes, em obras tão díspares como A última tentação de Cristo, A idade da inocência, Kundun e A invenção de Hugo Cabret. Encontrar uma coerência estética ou filosófica numa produção tão diversificada não é tarefa fácil. O que se pode dizer é que, independentemente do gênero e da época, é sempre um cinema substantivo, feito com garra e competência, e marcado por uma difusa religiosidade cristã, por um homem que confessa ter substituído a igreja católica da infância pela sala de cinema.


José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Publicou, entre outros, André BretonBrasil: Anos 60 e Futebol brasileiro hoje, e participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80Folha conta 100 anos de cinema Os filmes que sonhamos. Veja textos da coluna semanal sobre cinema que assinou no Blog do IMS entre setembro de 2011 e dezembro de 2018.