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O cinema em Gordon Parks

12 de novembro de 2025

A mostra Gordon Parks: a América sou eu está em cartaz no cinema do IMS Paulista em novembro.

 

Gordon Parks (1912-2006) teve uma trajetória marcada pelo engajamento social e pela representação da experiência negra, transitando com maestria entre a música (aprendeu a tocar piano na infância), a fotografia, a escrita e o cinema. Com uma carreira que abrange 11 obras, produzidas entre as décadas de 1960 e 1990, Parks ampliou seu olhar fotográfico, comprometido com os temas sociais, para a carreira cinematográfica, na qual também desenvolveu uma trajetória importante.

Seus três primeiros filmes: Flavio (1964), Diary of a Harlem Family (1968) e The World of Piri Thomas (1968) apresentam uma discussão interseccional entre raça, território e pobreza. Baseado em uma reportagem para a revista Life feita na favela da Catacumba, no Rio de Janeiro, o curta Flavio conta a história da família Da Silva, que vivia em condições de vulnerabilidade social. Narrado pelo próprio menino Flávio, o curta é considerado um dos primeiros filmes dirigidos por um homem negro no Brasil, antecipando produções importantes da nossa cinematografia, como Um é pouco, dois é bom (1970), do cineasta negro gaúcho Odilon Lopez, e Alma no olho (1973), de Zózimo Bulbul. ​Já em Diary of a Harlem Family, Parks retrata o cotidiano das famílias negras no Harlem, evidenciando as dificuldades reais enfrentadas pela família Fontenelle, atravessada pela pobreza e pelo racismo cotidiano.

Em The World of Piri Thomas (1968), Parks adapta trechos do livro Down These Mean Streets (1967) do autor de ascendência cubana e porto-riquenha Piri Thomas, um dos expoentes do movimento nuyoricano, que fomentava a literatura nova-iorquina de origem porto-riquenha. No caso de Thomas, isso era acrescido pelo debate racial, já que ele tinha origem afro-latina. No livro, ele descreve como foi crescer no Harlem hispânico, seu vício em heroína e sua participação no mundo do crime, o que o levou a passar sete anos na cadeia. O Harlem hispânico capturado por Parks é vibrante, mas, ao mesmo tempo, violento. Como em seus outros documentários, a situação da infância é central e descrita em sua vulnerabilidade. Uma Nova York crua se desvela em nossa frente, com ruas imundas, esgoto, falta de luz. Ao mesmo tempo, o apego à religiosidade católica está presente no filme. Ele termina com closes de imagens de santos católicos, entidades da Santeria cubana e porto-riquenha, seguidas de retratos de crianças, adultos latinos e afro-latinos, e com uma das famílias entrevistadas, em que o pai e a mãe recomendam precauções para as crianças, para que todos possam se manter vivos.

Nesses três filmes, ele fala sobre o impacto do desplazamento de famílias como os Da Silva, que vêm do Nordeste para o Sudeste brasileiro, dos Fontenelle, oriundos das Índias Britânicas, e dos porto-riquenhos e afro-latinos de um modo mais geral. É um cinema que também serve de instrumento para a denúncia social, promovendo a reflexão a respeito da cidadania, dos direitos civis e da dignidade humana em diferentes contextos.

A obra cinematográfica de Gordon Parks também perpassa um caráter autobiográfico, revelado a partir do filme Com o terror na alma (The Learning Tree, 1969), que se torna o primeiro longa-metragem dirigido por um cineasta negro em Hollywood. Fruto do livro homônimo, o filme aborda a infância e adolescência do jovem Newt, refletindo as tensões sociais e raciais da época na cidade segregada de Cherokee Flats, no Kansas.

O ápice da produção cinematográfica de Parks se dá em Shaft (1971), filme que se tornou um marco do gênero blaxploitation. Nele, Parks trouxe uma imagem revolucionária de um herói negro urbano, impetuoso e estiloso, traduzindo seu olhar fotográfico para o cinema ao construir sequências visuais e atmosféricas impactantes que ressaltavam a dignidade e o poder da comunidade negra.​ Marcante, a trilha sonora do filme foi composta por Isaac Hayes e rendeu ao filme o Oscar de Melhor Canção Original em 1972, sendo considerada uma das mais influentes da história do cinema, além de contribuir para o sucesso do gênero, com contribuições produzidas pelo próprio Parks em O grande golpe de Shaft (Shaft’s Big Score, 1972).

Cena de Shaft, de Gordon Parks

Leadbelly (1976) conta a história do músico folk Huddie William Ledbetter, conhecido como Leadbelly. Preso diversas vezes, obteve o perdão do governador do Texas e passou a fazer apresentações pelos Estados Unidos, tornando-se uma das principais referências da música negra norte-americana daquele momento. Novamente, como em suas séries fotográficas, Parks aborda a trajetória de pessoas negras de uma maneira mais aprofundada, tentando desvincular a trajetória de Leadbelly da marginalidade, ao mostrar suas relações de amizade, seu talento e as agruras que o ajudaram a ganhar notoriedade.

Solomon Northup's Odyssey (1984) foi seu último filme de ficção. Realizado para a TV pública, ele é baseado na autobiografia de Solomon Northup, um homem negro livre que foi ludibriado e escravizado. Em 2013, o diretor britânico Steve McQueen fez sua versão da história no filme 12 anos de escravidão (12 Years a Slave). Uma distinção importante entre um e outro é a da famosa cena em que a personagem Patsey é chicoteada por Solomon e por seu senhor. No filme de Parks, no lugar de Patsey, quem aparece é Jenny e na cena que seria a equivalente à de Patsey chicoteada, Parks cria um artifício em que Solomon engana a mulher do seu senhor ao fingir chicotear Jenny, quando, na verdade, está chicoteando uma pilha de lenha, enquanto Jenny grita como se estivesse sendo chicoteada.

Sua última contribuição nas imagens em movimento foi Martin (1990), um filme balé, que apresenta momentos significativos da vida de Martin Luther King. Quanto à influência no cinema atual, seu legado se manifesta fortemente em cineastas como Ava DuVernay e Spike Lee, que citam Parks como inspiração para sua abordagem estética e temática. Dessa forma, sua produção deixou um legado indispensável, não só pelo pioneirismo, mas também como ferramenta de luta e valorização da experiência negra na cinematografia mundial.