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O cinema na sala

14 de setembro de 2017

 

Este é um momento e tanto para acompanhar a abertura de uma nova sala de cinema. Em 2017, o mercado está nervoso, num crescendo. Depois do medo da TV e do home video em décadas passadas, surgem novas dúvidas sobre os hábitos do público com a internet, que agora tem no Netflix uma sombra na tela grande. Ainda assim, salas de cinema continuam sendo inauguradas.

Os americanos reclamam do pior verão em 20 anos nas bilheterias. Ações na bolsa de empresas exibidoras caíram muito nos últimos meses, e há rumores de que estúdios irão partir para o chamado Premium Video on Demand, ou Premium VOD, ideia que vem sendo estudada já há anos. A ideia é oferecer lançamentos simultâneos em casa, 17 ou 30 dias depois dos cinemas, com “preços premium”.

Isso diminui (ou extingue) a exclusividade das salas nos lançamentos. Hoje, leva em média três meses para que filmes sejam vistos fora dos cinemas. O mercado sempre a postos para “matar ou morrer” parece também pronto para correr atrás do próprio rabo e comê-lo. O mercado. Enquanto isso, Game of Thrones e Twin Peaks The Return têm tido o tipo de atenção na mídia cultural que muitos filmes de cinema não têm.

Ano passado, visitei o Metrograph, novo espaço em Nova York, com salas de rua que misturam filmes com um restaurante, modelo de negócio nos EUA e Europa. A ida ao cinema com comida no mesmo espaço. A combinação pode soar deslocada no Brasil, onde o cinema migrou da rua quase exclusivamente para o shopping, e onde a praça de alimentação já é uma instituição nacional ha décadas.

Na mudança da rua para o shopping, a ideia de “cinema popular” parece ter ficado pelo caminho, tendo sido retomada e reconfigurada nos últimos anos com a renovação do parque exibidor (e das classes C e D). Essa reconfiguração social/urbana do cinema nos últimos 30-40 anos, totalmente tramada pelo mercado, ainda aguarda um estudo de impacto nas nossas cidades.

Marc Ferrez, c. 1919. Cinema Pathé. Rio de Janeiro, RJ (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo IMS)

 

E os multiplex, aqui e no mundo, parecem tensos em 2017. Estão oferecendo uma quantidade notável de mimos, e por eles cobrando “preços premium”. Com o 3D já dando sinais de exaustão, agora temos poltronas que chacoalham o espectador com ventinho e aguinha no rosto – em 4D. Há salas XD, 4K, Imax Digital. Tem o Dolby Atmos, com som que sai do teto e cinemas com garçons servindo espumante em clima de classe executiva em avião. Espera-se que os novos Avatar, de James Cameron, lancem tecnologia 3D sem óculos, por um “preço premium”.

A ironia este ano é que o destaque de tecnologia em exibição cinematográfica (com “preços premium”) não veio de equipamentos digitais, mas de rolos de película Kodak que o mercado havia declarado mortos. Dunkirk, de Christopher Nolan, teve rendas grandes nas salas onde foi apresentado em Imax 70mm e Super Panavision 70mm, formatos analógicos que salas brasileiras não projetam mais. Nosso país teve uma longa e burocrática transição digital e, no processo, abandonou seu parque analógico. Como o disco de vinil, a projeção em “filme” pode ainda render dinheiro num nicho bom.

Enquanto isso, na Coreia do Sul, a Samsung apresentou em abril a primeira tela de cinema que é uma TV gigante, sem projetor. Curioso, pois o consumidor já tem o mesmo tipo de coisa em casa.

Ao borrar os limites da “qualidade técnica”, do “conteúdo” e da “acessibilidade”, a discussão em torno do Netflix torna-se interessante, e misteriosa. Com 104 milhões de assinantes no mundo (e crescendo), seis bilhões de dólares para gastar anualmente e a ”certeza” de que seu algoritmo de buscas “sabe o que o consumidor quer ver” (segundo o vice-presidente de produtos da Netflix, Todd Yellin), o serviço de streaming transformou-se numa presença na cultura.

Nas semanas de estreias nos cinemas de filmes recentes como o americano Corra!, de Jordan Peele, ou Como nossos pais, de Laís Bodansky, pessoas perguntavam naturalmente se os filmes já estavam no Netflix. Ainda não. Até uns três anos atrás, a pergunta mais comum era “Já tem pra baixar?” Isso é incrível.

Agora, toda essa conversa de mercado, o que ela significa para um pequeno cinema que abre as portas hoje? Talvez signifique entender este mercado para ter a liberdade de tentar outras coisas. Observar o trabalho realizado ha anos por salas no entorno, por exemplo, só aumenta a responsabilidade das escolhas da curadoria e da programação. Todas as salas integram um circuito de cultura já bastante diverso. A incerteza (mais do que a certeza) de não saber “o que o público quer ver” deve fazer parte mais ou menos sempre, um processo de aprendizado constante.

Pode também significar que esta sala seja um abrigo para filmes pequenos e grandes, e talvez discutir se de fato são pequenos, ou se são filmes grandes, do passado ou contemporâneos, de curta ou longa metragem. A sala de cinema pode ser um arquivo constante e vivo, projetado em filme película e em digital moderno, e onde os laços do cinema com outras formas de expressão seja uma conexão firme. E que tudo isso seja feito com a melhor apresentação técnica de som e imagem, sempre.

Finalmente, para cada nova ação criada para revender o produto “sala de cinema”, é bom lembrar que ela mantém-se viva desde 1895 por detalhes analógicos que não são mais muito discutidos: as poltronas em fileiras são viradas para uma tela, o ambiente é escuro e o espaço coletivo é de interação, mas também de individualidade respeitada. A sala como centro de imagem e ideias tem papel importante num momento de pessimismo social e politico. E é nesse espaço que o diálogo e o debate devem ser estimulados, a liberdade de expressar-se com imagem e palavra como elemento de cidadania.

(Texto originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 14 de setembro de 2017)

 

  • Kleber Mendonça Filho é cineasta e coordenador de cinema do IMS.