Uma seleção de filmes da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo está em exibição no cinema do IMS Paulista em outubro.
Entre as muitas atrações da fornida programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa nesta quinta-feira, uma das mais interessantes é a mini-retrospectiva dedicada a Marcello Mastroianni (1924-96), que estaria completando 100 anos.
A escolha dos filmes estrelados por ele passou longe dos títulos mais óbvios (A doce vida, 8 e ½, A noite, O belo Antonio, Um dia muito especial...) e da imagem de galã para se concentrar em cinco trabalhos de maturidade, em que o ator exibe todo o seu talento e versatilidade. Por ordem cronológica: Um homem em estado... interessante (Jacques Demy, 1973), O apicultor (Theo Angelopoulos, 1986), Olhos negros (Nikita Mikhalkov, 1987), Três vidas e uma só morte (Raoul Ruiz, 1996) e Viagem ao princípio do mundo (Manoel de Oliveira, 1987).
Curiosamente, entre os diretores dessas obras há um francês, um grego, um português, um russo e um chileno radicado na França – ou seja, nenhum italiano. E, dos cinco filmes, o personagem de Mastroianni só fala italiano propriamente em um: Olhos negros. Nos outros, fala francês, com forte sotaque, e grego (dublado por outro ator). Essa seleção realça, portanto, o caráter internacional, cosmopolita, do ator.
Por trás da grande variedade de gêneros – da comédia de Demy ao realismo fantástico de Ruiz, passando pelos road movies de Angelopoulos e Oliveira e pelo drama de época de Mikhalkov –, bem como de personagens (banqueiro, mendigo, apicultor, professor universitário, cineasta), o que unifica todas essas atuações, a meu ver, é o caráter profundamente humano – vale dizer, falível, contraditório, vulnerável – que Mastroianni confere a suas criaturas.
Antípoda do herói sem dúvidas e sem máculas, o homem multifacetado retratado pelo ator em mais de 140 filmes é quase sempre um ser hesitante, às voltas com suas contradições internas, não raro perplexo e paralisado. É essa sua vulnerabilidade – aliada à beleza e ao charme incontestáveis – que faz dele um dos atores mais amados do mundo.
Em entrevistas, Mastroianni costumava refutar a imagem de sedutor de mulheres que lhe era atribuída, dizendo que nas telas tinha encarnado todo tipo de homem: louco, traidor, impotente, covarde, tímido, gay e até grávido – justamente no filme de Demy programado para a Mostra. Segundo o astro, em Olhos negros seu personagem é o típico homem italiano, um indivíduo jovial, movido por paixões, mas sem a coragem de levá-las adiante, ficando na superfície e na incompletude.
Todos os filmes da retrospectiva são excelentes, cada um à sua maneira, mas dois deles parecem dialogar de modo mais notável com nosso tempo.
Um homem em estado... interessante, em que o dono de uma autoescola parisiense vivido por Mastroianni descobre um belo dia que está grávido, coloca em evidência a questão muito atual da relação entre a biologia e a divisão social de papéis entre os gêneros. O enredo, de certo modo, leva ao absurdo a situação do indivíduo desconcertado com o que traz dentro de si. Seu próprio corpo é um mistério ameaçador.
Três vidas e uma só morte, por sua vez, ao jogar com as trajetórias paralelas de um único personagem (banqueiro, mendigo, caixeiro-viajante, mordomo, professor da Sorbonne), joga com a ideia das realidades virtuais ou imaginárias, ao mesmo tempo em que homenageia indiretamente o próprio ofício do ator, que dá vida às mais diversas existências.
Completa a retrospectiva Mastroianni um filme curioso, a comédia inédita Marcello Mio (Christophe Honoré, 2024), em que Chiara Mastroianni (filha de Marcello com Catherine Deneuve, pobrezinha) decide durante um verão personificar o próprio pai, vestindo-se e agindo como ele ao mesmo tempo em que busca seus vestígios na vida das pessoas que o conheceram.
Destaques da Mostra
Em meio aos mais de 400 títulos programados para a 48ª Mostra de São Paulo encontra-se de tudo, mas o destaque são os novos filmes de autores raros no circuito exibidor, como o coreano Hong Sang-soo, o iraniano Mohsen Makhmalbaf, o israelense Amos Gitai, o romeno Radu Jude, o português Miguel Gomes, o chinês Jia Zhangke, o malaio Tsai Ming-Liang e o filipino Lav Diaz, que este ano comparece com um filme curto para os seus padrões (“só” quatro horas). O cinéfilo paulistano aprendeu com a própria Mostra a valorizar esses nomes.
Claro que há espaço também para diretores um pouco mais presentes no circuito exibidor, como David Cronenberg, André Téchiné, Pablo Larraín e Francis Coppola, cujo megalômano Megalópolis encerrará a Mostra, em 30 de outubro, e para novidades como Dahomey, da franco-senegalesa Mati Diop, documentário que ganhou o Urso de Ouro em Berlim.
E um programa dos mais fascinantes é o Foco Índia, com sete clássicos do mestre Satyajit Ray (1921-92) e um punhado de filmes inéditos de novos realizadores.
Uma novidade deste ano é a 1ª Mostrinha, com obras voltadas para o público infanto-juvenil, como a aguardada animação brasileiro-indiana A arca de Noé, de Sérgio Machado e Alois Di Leo, inspirada em Vinicius de Moraes.
Brasileiros
Entre os brasileiros, o grande destaque é Ainda estou aqui, de Walter Salles, ganhador do prêmio de roteiro em Veneza e o de atriz (Fernanda Torres) conferido pelos críticos norte-americanos. Mas há também os premiados nos recentes festivais do Rio (Baby, de Marcelo Caetano, Malu, de Pedro Freire e Centro ilusão, de Pedro Diógenes) e de Gramado: Oeste outra vez, de Enrico Rasi, Filhos do mangue, de Eliane Caffé, e O clube das mulheres de negócios, de Anna Muylaert.
Estão programados ainda os novos filmes de cineastas brasileiros de primeira linha, como Marcelo Gomes, Murilo Salles, Sandra Kogut, Lirio Ferreira, Jorge Furtado, Marco Dutra, Silvio Tender, Petra Costa e Eryk Rocha, entre muitos outros.
Enfim, opções não faltam. O difícil é controlar a ansiedade e o desejo de tudo abraçar, para quem passa o ano inteiro garimpando nos cinemas uma ou outra sessão que escape do ramerrame do mainstream.