Oferecemos em agosto uma oportunidade de ver em sala de cinema dois filmes marcantes do gênero horror/medo. Nosso ponto de partida para projetá-los é o aniversário de 50 anos de O homem de palha (The Wicker Man, 1973), filme de Robin Hardy que permanece uma força maior no gênero. Nos pareceu evidente que ao programar O homem de palha, seu parente hollywoodiano de baixo orçamento via 20th Century Fox, Corrida com o diabo (Race with the Devil, 1975), de Jack Starrett, o acompanharia bem. Que sejam duas descobertas excitantes para o nosso público.
Cada filme dessa sessão dupla tem cerca de 90 minutos enxutos e múltiplas sensações de insegurança na pele. De onde vem essa angústia? Talvez esteja relacionada à forma como os dois filmam pessoas desconhecidas lá e acolá no quadro. Quem são elas ali longe? Do que são capazes de fazer tão fora de um comportamento padrão?
O filme de Hardy passou décadas em relativa obscuridade. Tornou-se um clássico reconhecido com número cada vez maior de admiradores ao ser literalmente redescoberto em cópia rara (os negativos originais foram perdidos nos anos 1970, na Inglaterra). São exatamente sessões como estas que irão manter O homem de palha vivo sempre.
O filme chega ao Cinema do IMS na versão restaurada em 4K (via Tamasa, da França), com o corte mais próximo do que Robin Hardy quis fazer em 1973 (o filme foi mais tarde mutilado por distribuidores durante o lançamento).
Para os que estarão vendo o filme pela primeira vez, é importante não se informar com antecedência. Não se trata de um mero alerta da cultura do spoiler que nenhuma falta faria, mas de proteger uma construção incomum de suspense.
O homem de palha tem esse corte britânico que talvez gere um sentido maior de ansiedade e incertezas no espectador, algo brusco e seco, sempre dois passos à frente do personagem principal e da plateia. Não é um filme violento no sentido gráfico, mas é forte como um pesadelo.
Seguiremos um policial escocês (Edward Woodward), religioso cristão, caxias e uniformizado, que é enviado para investigar o desaparecimento de uma jovem garota numa ilha isolada chamada Summerisle, no alto verão do norte escocês. As descobertas graduais do nosso herói careta em Summerisle são também as nossas descobertas. O senso de perigo e terror aumenta.
Por todo o terror inquieto de O homem de palha, o filme parece ter sido escrito e dirigido por alguém que durante algum tempo acumulou um medo real e ensolarado da geração hippie, um fruto possível daquela época. A transformação de um movimento tão abraçado com a paz e o amor numa fonte impensável de terror, cheio de sorrisos musicais e alegria tribal, é um desdobramento poderoso como contação de história. E ter Christopher Lee como figura patriarcal de Summerisle é um toque e tanto.
Cena de O homem de palha
Corrida com o diabo encontra-se na mesma vibração de angústia, mas já há aqui um tom de cinema comercial dos anos 1970 feito nos EUA. Foi produzido para o mercado de drive-ins, mas o extrapolou, gerando reações melhores do que se esperava. Um road movie, sempre filmado em exteriores, como Sem destino (Easy Rider, 1969), de onde vem a presença carismática de Peter Fonda como um dos heróis.
Com Warren Oates (ator constante de Sam Peckinpah), Fonda faz parte de dois casais de amigos que viajam de motor home, a casa móvel tão USA que parece atualizar o símbolo de liberdade americana antes marcada pela motocicleta. Numa noite em lugar ermo, eles testemunham um ritual sinistro que não deveriam ter visto.
Suas companheiras (Loretta Swit e Lara Parker) compõem as descobertas de uma viagem aventureira, mas que vai tomando rumos assustadores. Entre O bebê de Rosemary, Sem destino, O homem de palha, a escola Roger Corman de schlock também se faz presente em Corrida com o diabo, uma bela descoberta do terror do outro.
* Kleber Mendonça Filho é cineasta e coordenador de Cinema do IMS