O que pode haver de mais pessoal e intransferível num indivíduo do que sua própria pele? Essa espécie de último reduto da identidade, usada para fazer documentos, abrir portas e acessar contas bancárias, é o ponto de partida e de chegada do filme O homem que vendeu sua pele, da diretora tunisiana Kaouther Hania Ben, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 8 de outubro.
Indicada ao Oscar de filme estrangeiro, essa coprodução da Tunísia com vários países europeus se inspira num fato real: a exposição em museus de um homem vivo com as costas tatuadas pelo artista belga Wim Delvoye. Mas a partir desse gancho factual a diretora e roteirista engendrou uma história bem mais complexa que acaba por se configurar quase como uma fábula dos nossos tempos. Vamos a ela.
A liberdade da mercadoria
Na Síria assolada pela guerra civil e pelas atrocidades do Estado Islâmico, o jovem Sam Ali (Yahya Mahayni) vê sua amada Abeer (Dea Liane) ser entregue a um casamento arranjado com um diplomata que a leva consigo para a Bélgica. Sam está desempregado, sem dinheiro e ameaçado de ir para a prisão quando por acaso recebe a proposta mefistofélica do artista belga-americano Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw): deixar-se tatuar nas costas e ser exposto como tela viva em museus da Europa e do mundo.
Não será spoiler dizer aqui que ele topa o acordo (o próprio título entrega isso), sobretudo pela possibilidade de ir reencontrar Abeer na Bélgica. O paradoxo, sublinhado com cinismo pelo próprio artista, é que Sam ganha sua liberdade de ir e vir justamente quando se torna uma mercadoria. A tatuagem em suas costas é a impressão ampliada de um visto de trânsito por toda a União Europeia.
“Liberdade” entre aspas, claro. Por contrato, Sam é obrigado a estar disponível a ser exposto onde e quando Godefroi exigir. Ele passa a levar uma vida paradoxal: hospeda-se em hotéis cinco estrelas, circula em carrões, mas tem que se exibir sobre um pedestal, de costas para um público que o filma e fotografa como se fosse um animal exótico.
Kaouther Hania Ben narra essa história com segurança e estilo. Seus enquadramentos, por meio sobretudo de espelhos, portas e janelas, enfatizam as ideias de fragmentação e duplicação da identidade. Já as primeiras imagens prenunciam esse viés estilístico: na tela branca aparece de início o que parece ser uma pequena fresta, aos poucos vão surgindo figuras que andam em direção à câmera, até que percebemos que se trata de um corredor entrecortado por paredes espelhadas, no ambiente clean de uma galeria ou museu.
A arte e o mundo
Essa manipulação dos reflexos atinge o requinte numa cena em que Sam e Abeer falam ao telefone. No começo, a tela se divide em duas, no modo clássico de mostrar esse tipo de diálogo. Cada um dos dois personagens está numa metade da tela. Mas Abeer se movimenta, revelando que o que víamos era seu reflexo num espelho, e, “magicamente”, ela troca de lado com Sam na tela. O efeito é conquistado sem ostentação, o que o torna mais bonito.
O atrito entre o mundo supostamente sofisticado da arte contemporânea e os horrores da vida real (guerra, desemprego, refugiados) faz lembrar outro filme recente, o sueco The square: a arte da discórdia, de Ruben Östlund, sobre o qual escrevi quando passou na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Só que ali o tema era tratado de dentro para fora, isto é, do circuito da arte para a sujeira do mundo, e em O homem que vendeu sua pele acontece o oposto.
Se há algo que enfraquece esse filme notável é sua tendência final à acomodação e à conciliação (comercial, política, amorosa), como se todas as contradições, todos os espinhos e arestas evidenciados até então tivessem que ser polidos para o espectador sair apaziguado do cinema.
Lavoura arcaica
Lavoura arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, que o crítico Carlos Alberto Mattos definiu acertadamente na época como “a primeira obra-prima do século 21”, está completando vinte anos. Para comemorar a data, o filme será relançado em película de 35 milímetros no cine Petra Belas Artes, em São Paulo. Na próxima quinta-feira, dia 14, haverá no cinema um debate com a presença do diretor.
O mínimo que se pode dizer desse grande filme, estrelado por Raul Cortez, Selton Mello e Simone Spoladore, é que ele dialoga à altura com o extraordinário livro de Raduan Nassar que o inspirou, e que até então era tido como “infilmável”. Não é sempre que se vê uma imersão cinematográfica tão profunda no universo poético de um escritor de primeira grandeza.