Estão em cartaz os novos filmes de dois dos cineastas mais importantes e influentes das últimas cinco décadas, ambos da geração que renovou o cinema norte-americano a partir do final dos anos 1960. O irlandês, de Martin Scorsese, está disponível na Netflix, depois de ter sido exibido brevemente em poucos cinemas, e Um dia de chuva em Nova York, de Woody Allen, ocupa as boas salas do ramo.
Talvez seja interessante observar como cada um deles representa à sua maneira uma volta às origens, uma reelaboração madura de temas e materiais que constituíram essas duas carreiras tão sólidas e pessoais. Em O irlandês, Scorsese retorna ao submundo dos mafiosos subalternos, de matadores profissionais envoltos numa rede de lealdades e intrigas. Allen, por sua vez, volta à Manhattan dos amores fluidos, da cultura efervescente, das relações entre cultura intelectual e celebridade como armas de combate ou moedas de troca.
Há um evidente desnível entre os dois filmes: se O irlandês mostra um vigor e um alcance impressionantes, em que Scorsese parece reencontrar, aos 77 anos, sua melhor forma, Um dia de chuva é pouco mais que o rotineiro “Woody Allen da temporada”, embora este último veredicto talvez seja enganoso, como veremos. Mas vamos a eles.
O irlandês
Personagens reais povoam este épico sujo de Scorsese. O protagonista e em grande parte narrador dos acontecimentos, o ex-caminhoneiro Frank Sheeran (Robert De Niro), funciona como um elo entre a máfia ítalo-americana, representada pelo chefe intermediário Russell Bufalino (Joe Pesci), e o movimento sindical, encarnado no carismático líder dos caminhoneiros Jimmy Hoffa (Al Pacino).
Durante três horas e meia, Scorsese sustenta a tensão eletrizante entre essas esferas – o crime, a política, as relações pessoais – ao fazer com que seus personagens pareçam estar sempre na corda bamba, em que qualquer movimento em falso pode significar a queda e a morte.
Em termos temáticos, o que se acrescenta aqui, em relação aos filmes de gângsteres anteriores do diretor, é a dimensão da História, com inicial maiúscula: o movimento sindical, os Kennedy, Nixon, as relações com Cuba. À parte isso, o universo de personagens e situações é semelhante ao de outros filmes do diretor, notadamente Os bons companheiros e Cassino, mas o ritmo e o tom são outros. Em vez do andamento nervoso, da montagem frenética, há uma valorização do silêncio, dos não-ditos, do prolongamento da expectativa.
Essa mudança de cadência tem várias explicações possíveis. Além do que poderíamos ver como uma melancolia outonal de Scorsese como indivíduo e como artista, há o fato de que se acompanha aqui a trajetória de personagens também maduros, retratados entre os quarenta e os oitenta anos. Se, em Os bons companheiros, o ritmo era determinado inicialmente pelo deslumbramento juvenil com o mundo da máfia e, depois, pela sofreguidão paranoica do vício em cocaína, aqui se trata de homens feitos em busca de uma certa acomodação de interesses, quase de uma aposentadoria confortável.
Essa mudança de tom se traduz, por exemplo, na atuação do fabuloso Joe Pesci, que deixou de lado o tipo irrequieto, elétrico, de baixinho invocado, que remetia a James Cagney, para se tornar uma figura tanto mais sinistra e ameaçadora pelos seus silêncios, pelos olhares sutis, pela virtual imobilidade.
Shakespeare no submundo
No mais, Scorsese reutiliza com maestria seu arsenal de recursos: narração descontínua, locução em primeira pessoa ocasionalmente em contraste irônico com as imagens, atores que às vezes falam direto para a câmera (como em O lobo de Wall Street), sequências que explicam em imagens, de maneira quase didática e documental, um determinado esquema criminoso (como em Cassino), etc.
Um dos procedimentos mais eficazes, que Scorsese herdou do cinema clássico e aperfeiçoou, é a mudança, por meio da montagem, do tempo verbal, do pretérito perfeito (“eu fiz”) para o imperfeito (“eu fazia”): no episódio do primeiro assassinato cometido por Sheeran, ele joga a arma no rio depois do crime; em seguida, numa sucessão rápida, vemos uma porção de outras armas sendo arremessadas, e por fim o fundo do rio repleto delas. As imagens dizem: “eu fiz”; “eu fazia”; “muitos faziam”.
Com um realismo que poderíamos chamar de “substantivo”, O irlandês ilumina o que talvez seja o fascínio exercido pela máfia sobre o nosso imaginário: a combinação explosiva entre a ética protestante da prosperidade e do lucro, predominante na formação da América, e o espírito da omertà, os códigos de honra e lealdade dos imigrantes de origem católica (italianos e irlandeses).
Os gângsteres de Scorsese são deslocados e anacrônicos “homens cordiais”, na acepção de Sergio Buarque, isto é, indivíduos que se movem pelas relações pessoais e pelos afetos (lembrando que o ódio também é um afeto), mais do que pelo respeito à lei impessoal ou mesmo pelo interesse material. Dessa mistura se produzem as tragédias shakespearianas do submundo, desde o Scarface de Howard Hawks (1932) até O irlandês.
Faltou falar da personagem da filha de Sheeran, Peggy (Lucy Gallina/Anna Paquin), que atravessa toda a narrativa como uma espécie de consciência moral a atormentar não apenas o pai, mas também o chefe mafioso Bufalino, que não consegue dobrar a garota com suas gentilezas nem romper sua desconfiança. É nela, mais do que no padre da sequência final, que Scorsese deposita seu profundo sentimento cristão da culpa e da redenção.
Woody Allen
Em contraste com o tour de force de Scorsese, Um dia de chuva em Nova York pareceria apenas mais um divertimento agradável desses que Woody Allen nos fornece anualmente. Mas essa “sessão da tarde” tem algumas particularidades dignas de nota, no mínimo em sua relação curiosa com a trajetória do diretor.
https://www.youtube.com/watch?v=r2QTxPGMElk
Na história do rapaz milionário e de talento difuso (Timothée Chalamet) que leva a nova namorada (Elle Faning) a Nova York com a intenção de viver com ela um idílio de dois dias nos lugares mais descolados da cidade, reencontramos ecos de inúmeros filmes do diretor, em particular de Annie Hall e Manhattan.
Os mesmos encontros e desencontros amorosos providos pelo acaso, os mesmos diálogos espirituosos sobre arte e literatura, o mesmo olhar amoroso para os locais icônicos da cidade (o Central Park, o Metropolitan, o MoMa, um punhado de hotéis de luxo) e até a mesma chuva repentina que abole ou reforça o romantismo.
Mas há, a meu ver, uma camada de ironia melancólica nessa revisitação. A começar pelo nome do protagonista, Gatsby Welles, à primeira vista uma referência um tanto pernóstica a dois grandes artistas da América, o escritor Scott Fitzgerald e o cineasta Orson Welles. Num diálogo crucial entre Gatsby e sua mãe, porém, é possível vislumbrar uma razão mais comovente para o prenome do rapaz: assim como o personagem de Fitzgerald, também a mãe saiu de um passado obscuro e duvidoso e conquistou respeitabilidade por força do dinheiro e de uma sofisticação ostensiva, aparatosa.
Outro procedimento recorrente de Woody Allen desde que saiu da frente das câmeras – o de fazer de um ator mais jovem seu alter ego, portador de suas inquietações e neuroses pessoais – encontra aqui uma modulação interessante. Gatsby, embora insatisfeito com sua vida e incerto quanto a seu futuro, não tem o desassossego ofegante e gaguejante de outras versões da persona do diretor. Ao contrário, parece passear despreocupadamente pela vida, ao sabor dos acasos e das mudanças meteorológicas.
Romantismo e ironia
Por outro lado, para infundir num personagem tão jovem de nossa época os interesses pessoais do cineasta – standards do jazz, filmes clássicos, gosto pela literatura europeia – foi preciso fazer dele um excêntrico, forçado pela mãe a ler Henry James desde a infância.
Do ponto de vista da construção narrativa, a habilidade do diretor segue intacta: acompanhamos como que “em tempo real” as jornadas paralelas dos dois namorados separados ao longo da tarde e da noite em Nova York.
Na própria leveza de fábula do filme há uma autorreferência irônica. A certa altura, Gatsby faz o elogio do escapismo dos filmes românticos clássicos de Hollywood, com suas cores adoravelmente irreais. E é justamente o que vemos na tela, graças à fotografia de Vittorio Storaro e à direção de arte de Santo Loquasto: uma agradável comédia romântica escapista, com ocasionais comentários mordazes sobre arte, mercado e esnobismo cultural. As sessões da tarde também têm o seu valor.