São relativamente poucos os exemplos do chamado “realismo mágico” no cinema brasileiro. O lodo, de Helvecio Ratton, que entra em cartaz nesta quinta-feira, ajuda a diminuir essa lacuna.
Baseado em conto homônimo do escritor mineiro Murilo Rubião, publicado em 1979, o filme desenvolve e atualiza o enredo do texto original, situando-o no centro de uma Belo Horizonte bem concreta e contemporânea.
Homem comum
Em linhas gerais, trata-se da história de um homem comum de meia-idade, Manfredo (Eduardo Moreira), funcionário de uma companhia de seguros, que procura um psiquiatra para tratar de uma depressão e a partir daí se vê engolfado numa crise que abarca todas as dimensões da sua vida: o trabalho, as relações pessoais, a vida doméstica e a saúde física.
O psiquiatra, um certo doutor Pink (Renato Parara), passa a persegui-lo incansavelmente, tentando forçá-lo a encarar “seu lodo interior”, isto é, o incômodo mental/moral que carrega desde a infância por conta de relações obscuras com a irmã. Em paralelo à onipresença algo fantasmagórica do psiquiatra, surge inexplicavelmente no peito de Manfredo uma ferida que secreta um sangue escuro e espesso, mais parecido com um lodo.
Há um lado marcadamente kafkiano no modo como o protagonista se vê enredado numa teia de que parecem fazer parte todos que o cercam e que o leva ao banco dos réus por uma dívida impagável com o doutro Pink.
No filme de Helvécio Ratton, o inventário de culpas que esmaga Manfredo ganha um matiz mais explicitamente freudiano, com o incesto assumindo o primeiro plano.
Mas o mais interessante da versão cinematográfica, a meu ver, é o modo como concretiza visualmente a queda existencial do protagonista, inserindo seu destino numa trajetória que se repete cotidianamente, com pequenas variações, pelos mesmos locais do centro de Belo Horizonte: uma praça, um corredor estreito, uma passarela de pedestre. A concentração em espaços precisos, mostrados em planos breves, evita a dispersão do relato na barafunda da grande cidade e adensa o drama do protagonista.
Do banal ao fantástico
A par disso, há a repetição das situações mais banais. O filme começa com uma delas: no café da manhã, Manfredo tira a casca do ovo cozido trazido pela empregada (Teuda Bara). Nada poderia ser mais banal e prosaico – e é desse prosaísmo que vai brotar o fantástico, como costuma acontecer na obra de Murilo Rubião.
À concretude geográfica da narrativa corresponde também uma espécie de aclimatação cultural, como se, no destino de Manfredo, Kafka encontrasse Nelson Rodrigues. O personagem do colega de trabalho canalha (Rodolfo Vaz), por exemplo, parece saído de uma peça do dramaturgo. O peso do catolicismo, já sugerido no conto original, ganha referências sutis aqui, como no crucifixo na parede na cena traumática da infância evocada reiteradamente.
Por fim, há que destacar o primoroso trabalho da direção de fotografia (de Lauro Escorel) e da direção de arte (de Adrian Cooper) na criação de ambientes ao mesmo tempo realistas e oníricos, com a predominância de uma escala cromática que vai do amarelo ao marrom, passando pelo ocre e pelo dourado. Nuances do lodo que ameaça brotar das profundezas de Manfredo para afogá-lo. O próprio personagem parece adquirir um crescente tom terroso em sua pele.
O “resto” fica por conta do elenco competente e bem entrosado, quase todo ele oriundo do grupo mineiro de teatro Galpão. O veterano Helvecio Ratton enveredou com resultados variados por diversos gêneros, da fantasia infantil (A dança dos bonecos) ao drama político (Batismo de sangue), passando pela comédia moral (Amor & Cia.) e pela aventura infanto-juvenil (O segredo dos diamantes). Talvez O lodo seja seu filme artisticamente mais “redondo” e bem-sucedido.