Uma lâmpada solta que pisca, oscila pela sala num fio e quebra-se no vidro. Uma dança interrompida pela falta de energia elétrica e que continua junto ao acender e apagar da flâmula de um isqueiro. Neons verdes e brancos de uma publicidade que ilumina as ruas escuras de Taipei. Em boa parte dos seus filmes, Edward Yang constrói cenas recorrentemente marcadas por uma luz trêmula – ora presente, ora em desaparição. É uma luz que percorre o espaço, os objetos, os personagens, e está prestes a ceder à escuridão, aos pontos negros da imagem. Com eles, ela flerta e, elegantemente, deles se afasta. Entre sua aurora e seu ocaso, essa luz conta um instante, um gesto delicado, que ilumina um afeto na mesma cadência que o dissipa. É uma luz gráfica, na inversão da fotografia, mas que também grifa – no modo como se inscreve na superfície visível – uma preciosa distância ética ao olhar as emoções dos personagens; fugidia, ela, a luz, rapidamente expia aquilo que permitiu espiar.
Se essa é uma marca do estilo fílmico de Yang, constata-se, na sua trajetória, como essa dramaturgia de uma luz descontínua brota e se esboça em História de Taipei (Qing mei zhu ma, 1985). A sequência de abertura é reveladora dessa cadência. Vê-se Lon (Hou Hsiao-hsien) e Chin (Tsai Chin) num apartamento vazio, que possivelmente alugarão: um espaço que seria futuramente preenchido pela televisão, pelo videocassete e por outros objetos eletrônicos essenciais, como bem diz Chin. Fecha-se a porta. Vê-se a sala vazia diante de uma janela que aponta para um horizonte urbano. Complexa e articulada, a dramaturgia visual e espacial de Yang intercala três aspectos distintos que solicitam um destaque: as mudanças nas faces (urbana) de Taipei e (íntima) dos personagens; os desencontros sentimentais de três pares de casais; e a forma como as paisagens imbricam a interioridade da cidade com a exterioridade dos dramas pessoais.
Tão discreto quanto primoroso, o raccord, a rima visual e cinematográfica da cena inicial, muito traduz dos dilemas que perpassam Lon e Chin. De forma sintomática, eles nunca estarão plenamente juntos. Abrirão e fecharão portas e olharão seus destinos por diferentes janelas. São quartos, casas antigas e novas, prédios abandonados, ruas vazias em travelings noturnos e fachadas tradicionais que reverberam entre os afetos de Lon e as sofisticadas intermitências de Chin, num contraponto que intercala auroras e noites súbitas: são espaços líquidos. Essa força de inscrição espacial repercute dramaticamente no fato de Chin trabalhar numa grande corporação imobiliária. Numa das suas conversas com Mr. Ke (Ke I-cheng), o arquiteto da empresa onde trabalha, ele confessa confundir-se e não reconhecer com precisão os prédios que projetou daqueles de outros arquitetos. É essa a face sem rosto, a imagem sem espelho, dessa cidade nova, dessa Taipei que se distancia das heranças mais tradicionais, que Yang quer captar no lusco-fusco das suas ruas e no ir e vir dos seus personagens.
No segundo aspecto salientado, vê-se o tema da separação e da autonomia feminina, tão caros aos anos 1980. História de Taipei torna-se um filme sobre mentiras, traições e instantes de abandono, enganos e sinceridades que transitam entre casais, amigos, familiares. Não por acaso, ao redor de Lon e Chin orbitam outros casais com dramas afins. O arquiteto Mr. Ke hesita em continuar seu casamento para viver de forma plena com sua amante. Mais velhos, os pais de Chin estão na iminência de uma separação. E Ch’en (Wu Nien-jen), antigo amigo de Lon, é abandonado por sua mulher. São casais em desmantelos. Mas são também mulheres que começam a reivindicar um protagonismo. É notório como Yang se filia à dramaturgia cotidiana e comum de Yasujiro Ozu, com a diferença de que uma personagem feminina como Chin permite-se a recusa, algo que jamais passaria pelo mestre japonês. E se a obra de Ozu é marcada pelo tema do casamento, o que se vê em História de Taipei são as luzes e sombras dos instantes que circunscrevem a separação – e a autonomia feminina – na cultura oriental.
O terceiro aspecto é o mais luminoso e reflete-se nas paisagens que estão ao redor de Chin e Lon. Chin é solar e circula elegante, com seus charmosos óculos escuros, exalando uma exterioridade translúcida como os vidros dos prédios que empreende. Lon, por sua vez, perambula por ambientes mais tradicionais, noturnos e escuros, vinculados à paixão pelo beisebol, aos jogos mundanos, conectados a uma pobreza de Taipei que remete mais diretamente à herança chinesa; é opaco, arisco, difícil, um tanto adolescente, reticente em aceitar as regras do mundo adulto – e capitalista. São ambos personagens permeados por uma interioridade opaca e uma exterioridade luminosa que reverberam nas ruas, nos neons salpicantes que anunciam a Fuji Film e que enlevam um gesto de um carinho fortuito. Ao final, na última cena, são os carros, o trânsito e as próprias veias abertas de Taipei que se refletem numa fronteira borrada entre o vidro dos prédios da cidade e os óculos escuros, espelhados, de Chin. A luz urbana a todos perpassa e já não abriga mais ninguém.
História de Taipei foi um filme que já nasceu histórico, mas também reivindica um lugar de maior centralidade no cinema contemporâneo. Brota histórico, pois revela Hou Hsiao-hsien numa atuação ímpar e irrepetível. As histórias, no entanto, acenam para algo maior. Se a chamada Escola de Taiwan – que também acolhe o próprio Hou junto a Tsai Ming-liang – emerge como uma fonte de inspiração para inúmeros cineastas, esse fio soa um tanto frouxo e solto com o maior desconhecimento da potente obra de Edward Yang. Revê-lo propicia uma oportunidade única de observar, ao menos por alguns fotogramas, uma genuína luz dramática, uma fotogenia que precisamos reter com mais carinho. Como se a história também voasse nas asas de um vaga-lume, e o lusco-fusco da suas imagens embalasse novos vértices e vórtices das suas forças e vetores.
Pablo Gonçalo é roteirista, crítico, diretor e professor de cinema