Dois longas-metragens de Karim Aïnouz – O marinheiro das montanhas e Nardjès A. – que chegam esta semana aos cinemas, incluindo a sala do IMS Paulista, comprovam que o diretor cearense é um dos cineastas mais interessantes da atualidade.
Ambos podem ser definidos como documentários, embora O marinheiro rompa em várias frentes as fronteiras do gênero. São, como veremos, duas experiências cinematográficas opostas e complementares.
O marinheiro das montanhas é a narrativa em primeira pessoa da viagem do diretor à Argélia, a terra de seu pai, um homem que ele mal conheceu. Na locução em off, o próprio Karim se dirige a sua mãe, Iracema, como se lhe endereçasse uma longa carta imaginária.
Iracema, que já morreu, não chegou a conhecer a Argélia, apesar das promessas do pai de Karim de que um dia a levaria, junto com o filho, para viver em seu país. (Iracema, cabe lembrar, é o nome da personagem do também cearense José de Alencar que vale por um mito fundador da nação brasileira.)
Há aí, portanto, um aspecto de acerto de contas, de efetuação no imaginário daquilo que não se cumpriu na realidade. Dessa tensão entre “o que é” e “o que poderia ter sido”, o filme extrai muito de sua força e de sua poesia.
Palavra e imagem
Do ponto de vista estritamente cinematográfico, no entanto, o mais estimulante é a fricção entre palavra e imagem, entre o que ouvimos e o que vemos, criando um novo território, uma nova dimensão, que só existe na tela – e na sensibilidade do espectador.
Um procedimento semelhante já se havia esboçado em Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, em que as imagens documentais interagiam com o texto ficcional da locução para produzir uma terceira coisa, o filme. A diferença é que naquela obra a narração em primeira pessoa era feita por um personagem fictício, um geólogo representado por Irandhir Santos, ou antes por sua voz, enquanto em O marinheiro quem fala é o próprio diretor, e o que se conta, até prova em contrário, é a história real de sua família.
Outra mudança importante é que as imagens do filme de 2009 se limitavam a registros documentais captados na beira da estrada numa viagem, ou em várias viagens, pelo interior do Brasil. Na odisseia de Karim rumo a suas origens ancestrais há uma colagem visual muito mais heterogênea, misturando documentação bruta, “jornalística”, a trechos de filmes domésticos, fotos de família, grafismos, desenhos animados e até imagens de microscópio – justificadas pelo ofício de Iracema, uma bióloga especializada em algas vermelhas.
Sonho e memória
Nesse processo, que mimetiza a liberdade de deslocamento do sonho e da memória, O marinheiro nos conduz por várias épocas e lugares, de Fortaleza a Cabília (destino final da jornada, região montanhosa ao norte da Argélia onde nasceu o pai de Karim), passando por Washington, Colorado, Marselha e Argel, bem como por sucessivos choques culturais, pela guerra de independência argelina e pelo golpe militar no Brasil.
No início e no final do filme – primeiro, por escrito, depois na voz do cineasta – alude-se ao fenômeno da “calentura”, um delírio febril que acometia os antigos navegantes nas zonas tropicais, fazendo-os avistar montanhas e prados aprazíveis em pleno oceano. Desse jogo entre o real e o imaginário, o fluido e o concreto, a raiz e a seiva, a montanha e o mar, Karim Aïnouz constrói uma das obras mais estimulantes dos últimos tempos.
Nardjes
Em Nardjès A. o cineasta cearense se empenha numa façanha inteiramente distinta. Se O marinheiro atravessa décadas e continentes, articulando real e imaginário num caleidoscópio vibrante, aqui tudo se concentra em um único dia – 8 de março de 2019 – e em um único local – o centro de Argel – em que se acompanha no calor da hora a jovem Nardjes numa jornada de manifestações de rua para impedir um quinto mandato do presidente argelino Abdelaziz Buteflika.
Trata-se, desta vez, de mergulhar na subjetividade de outra pessoa (Nardjès), no meio do turbilhão da história imediata. Aqui também há um atrito entre a realidade bruta e a dimensão imaginária – no caso, a memória, os projetos e desejos da protagonista –, mas com um foco muito mais restrito e um instrumental muito mais limitado (tudo foi filmado com celular). O resultado é um ótimo documentário, informativo, vívido e emocionante, mas sem o alcance excepcional de O marinheiro das montanhas.