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A história reinventada

04 de janeiro de 2024

O ano cinematográfico começa auspicioso com o novo filme de Nanni Moretti, O melhor está por vir.

É uma obra tão rica e multifacetada que fica difícil até fazer uma sinopse. Já começa com um filme dentro do filme: o cineasta Giovanni (Nanni Moretti) roda um drama político ambientado num bairro de Roma no ano de 1956. A seção local do Partido Comunista Italiano promove e recebe com entusiasmo a visita do Circo Budavari, vindo diretamente de Budapeste.

A data não é aleatória: 1956 começa com a denúncia dos crimes de Stalin e do culto à sua personalidade, no 20º Congresso do Partido Comunista da URSS, e termina com os tanques soviéticos esmagando brutalmente a revolução democrática e popular na Hungria. É, portanto, um momento decisivo na história do comunismo internacional.

Tempo em suspenso

Os protagonistas do filme de Giovanni – Ennio (Silvio Orlando), editor do jornal do PCI, e sua assistente Vera (Barbara Bobulova) – têm visões diferentes quanto à linha a ser seguida pelo partido. Calorosa e passional, ela quer uma ruptura com os soviéticos; pragmático, disciplinado, Ennio hesita, à espera de uma definição da direção partidária.

É nesse tempo em suspenso que Moretti constrói sua comédia política e moral, expressando nela, ao mesmo tempo, uma visão de mundo e uma concepção de cinema, tal como Truffaut esperava dos grandes filmes.

A certa altura, ao examinar o cenário que reproduz a sede local do PCI, Giovanni se irrita ao ver um cartaz em que aparecem Lênin e Stalin. O assistente lhe explica que os partidos comunistas mantiveram o retrato de Stalin durante muito tempo. Ele responde: “Mas no meu filme não. Não quero a cara desse ditador sanguinário”. Rasga então o cartaz ao meio, “expurgando” Stalin.

Essa cena memorável é plena de significado. Nela, Giovanni/Moretti expressa ao mesmo tempo sua visão política (um comunismo democrático, avesso ao modelo soviético) e uma aposta no cinema como território do desejo, do sonho, da imaginação. Em outra passagem, Giovanni diz: “Na história, não existe o ‘e se...’. Para mim, ao contrário, só o que interessa é o ‘e se...’.”

Como o Tarantino de Bastardos inglórios ou o Bellocchio de Bom dia, noite, Moretti reescreve a história de acordo com o seu desejo. É uma afirmação de fé na imaginação e na arte das imagens.

Ética do cinema

Destaquei aqui o que me parece o eixo central de O melhor está por vir, mas o filme é muito mais que isso, trazendo um frescor e uma desenvoltura admiráveis ao misturar assuntos e saltar de um gênero a outro: comédia, drama, musical, documentário.

Fiquemos apenas na relação com o cinema. Além do filme de Giovanni sobre 1956, há outro projeto seu, de um drama sobre os cinquenta anos da vida de um casal, embalado por canções românticas italianas. Vemos flashes desse filme, ambientado em épocas diversas, com fundo musical de Fabrizio de André, Luigi Tenco e outros astros da música popular italiana.

E há, sobretudo, o filme dirigido por um jovem cineasta (Giuseppe Scoditti) e produzido pela mulher de Giovanni, Paola (Margherita Buy). O sujeito é um sub-Tarantino, que se compraz nas imagens mais estúpidas e brutais. Na hilária sequência que reproduz a filmagem da última cena dessa bobagem sangrenta, Giovanni/Moretti recorre ao arquiteto e senador Renzo Piano e à matemática e escritora Chiara Valerio para discutir a estética e a ética da violência no cinema.

Essa inserção de figuras conhecidas reais, mais do que produzir um estranhamento cômico (como na aparição de Marshall McLuhan numa cena célebre de Annie Hall, de Woody Allen), introduz um tom de ensaio e amplia o alcance intelectual, moral e político da discussão.

O cinema perpassa todo o filme de Moretti. Além de cenas de Lola (Jacques Demy, 1961) e A doce vida (Fellini, 1960), há referências a Apocalypse now, de Coppola, Não matarás, de Kieslowski, Irmãos cara de pau, de John Landis, etc.

Não falta sequer uma pequena piada interna: numa piscina olímpica, enquanto dá suas braçadas, Giovanni fala sobre o projeto de filmar o conto “O nadador”, de John Cheever, mas conclui: “Eu devia ter feito esse filme há quarenta anos, quando estava mais magro e em forma”. Cabe lembrar que o próprio Nanni Moretti dirigiu e estrelou em 1989 Palombella rossa, em que representava um jogador de polo aquático.

Prazer de filmar

Muita coisa ficou de fora dos comentários acima: a crise do casamento de Giovanni e Paola; a relação com um coprodutor picareta francês (Mathieu Amalric) e com jovens coprodutores coreanos; e sobretudo a cena impagável da reunião de Giovanni com representantes da Netflix, que se expressam numa avalanche de clichês (“arco narrativo”, “slow burner”, “turning point”, “momento what the fuck”...).

A preocupação política e a ênfase no discurso verbal não abafam de modo algum o visível prazer de filmar e de proporcionar momentos quase epifânicos, como a cena em que Giovanni e seu coprodutor francês andam de patinete pelas ruas quase vazias de Roma à noite, num lirismo urbano que remonta a Fellini, ou o plano contínuo em que vemos do alto o cineasta percorrer vários cenários do estúdio. Nunca se sabe o que virá depois de cada sequência. Moretti (cujo nome de batismo, claro, é Giovanni) adquiriu a segurança e a liberdade dos grandes artistas de fazer o que lhe dá na telha. Melhor para nós.