A Sessão INDETERMINAÇÕES - Abraçar a morte: o cinema de Afranio Vital está em cartaz no cinema do IMS Paulista em novembro.
No atual programa da plataforma INDETERMINAÇÕES, é notável a preponderância da relação personagem-espaço. A presença da rua nos quatro filmes não só oferece contexto aos personagens centrais mas se con-funde com ele. A sugerida fusão mútua indica que essas pessoas são produtos do espaço, do ambiente, da época, e são também artífices desse exterior. Variando em grau a cada curta, é possível observar um impossível descolamento personagem-contexto, que age no sentido oposto de um hipotético destacamento baseado em excepcionalidades, em individualidades bem definidas, bem contornadas. De certa forma, é possível dizer, através deste conjunto de filmes curtos, que o processo que eles narram diz respeito às dimensões em que um personagem negro se torna “outro”.
Em especial nos filmes dos anos 1970 – feitos pela dupla Afranio Vital e Reinaldo Cozer, da borgiana Aleph Filmes –, o que temos são retratos que caminham na direção de uma certa dissolução, uma reticência ou um ponto de indeterminação do que podemos chamar de “pessoal”. Realizados em 1973 e 1977, os curtas dirigidos por Vital engendram uma certa descrição subversivamente discreta que caracteriza também a caligrafia fílmica de seus longas. Ataulfo Alves e Antônio Maria funcionam igualmente como presenças e ausências. As eventuais fotografias que os plasmam em tela não parecem ser o centro narrativo, pois o que prepondera é o espaço, o interstício: seja a pacata Miraí mineira de Ataulfo ou a noite das ruas cariocas de Antônio Maria. É notável que a recuperação desses filmes hoje reafirme um tom que conjuga fluidez, melancolia e lirismo, que encontramos nos demais projetos de Vital. E é justamente esse matiz que ajudou que seu cinema contrastasse com as demandas históricas mais visíveis de uma época, assim como o de seus mestres Carlos Hugo Christensen e Walter Hugo Khouri – artesãos da nuance.
Tal incompatibilidade ainda hoje persiste. A demanda pelo significado claro, pela postura “cheia de si”, pela redundância como ferramenta de afirmação social e performance de “empoderamento” – temperadas pela ideologia liberal da excepcionalidade individualista – dá o tom do contexto do tecnofeudalismo de dados atual. Em especial, a produção em curta enfrenta hoje em seus circuitos o difícil fardo de ser obrigada a imediatamente “significar”, a se “posicionar”. Em alguns casos, como aqui no filme de Rodrigo de Janeiro e Samuel Lobo, recai a expectativa da figura contemporânea do “apagamento” – em que o filme seria justamente a tentativa autoafirmativa de reverter esse processo.
Entretanto, um paradoxo se estabelece. No livro Esfinge negra – A história do cineasta Afranio Vital, de Carlos Ormond[1] e nas deliciosas entrevistas do essencial blog Estranho Encontro, de Andrea Ormond[2], percebemos rastros de uma poética fílmica de pendor sutilmente filosófico, que enseja desejar o desaparecimento como território imaginativo. Em 2017, num texto sobre o segundo longa de Vital, Longa noite do prazer[3], escrevi em seu parágrafo final:
“A força do filme é a de justamente sugerir uma forma moderna e trágica que possa trazer à tona o principal traço subjetivo desta nação que é a herança da escravidão, ligando-a a todo um repertório expressivo filosófico e cultural que lhe foi historicamente alijado – daí a precisão na escolha de Coltrane, artista que encarna justamente essa possibilidade de uma modernidade negra, densa, sombria, lírica, ao mesmo tempo concreta e abstrata. A redescoberta da obra de Afranio Vital é no mínimo uma grande oportunidade de retomar a construção desta linha, sempre a fazer, de um lirismo negro que não passe por soluções fáceis, e também que não se alije dos dados formadores da sociedade brasileira, que busca uma língua própria para sensações tão nossas. Talvez, de novo, este caminho não dê em nada. Veremos.”

A possibilidade do interesse sobre esse “lirismo negro” subliminarmente discreto hoje encontra outro tipo de barreira, análoga ao que Afranio descreve ter sentido nos anos 1970 e 1980, em seu depoimento em Dois Nilos. Em ambos os momentos históricos, a pressão pelo sentido manifesto se impõe como demanda histórica e tem como preço o relativo desinteresse em poéticas como a de Vital – baseadas nas paletas do implícito e do indireto –, condenadas junto a seus autores à desidratação histórica. Esse é nosso nó. Pois, hoje, o desejo da “justiça histórica” direcionado a quem potencialmente foi institucionalmente alijado exige, de forma implícita, uma caligrafia para os trabalhos que desejam entrar por essa porta fugaz. Tal idioma – calcado em clarezas indiscutíveis – ativa uma pedagogia dos sentidos extremamente pobre, que tende ao uniforme das boas consciências e que agrada mais do que tudo às instituições e sua necessidade de performar publicamente compromisso social. Subjugando arte ao marketing, portanto.
A força contemporânea do cinema de Afranio é a persistência de seu desajuste. Inclusive, a própria diferença de tom entre Dois Nilos e os demais curtas é flagrante, e a sessão encarna perfeitamente o embate que revive nos dias que correm. Uma das figuras da imaginação capitalista hoje é a figura do “impacto”. “Imagens de impacto” são a retórica emblemática de um tempo em que a atenção é roubada pelas corporações, e nossos sentidos, moldados pelas big techs, só conseguem sentir o “extremo”. A trilogia aqui recuperada da Aleph Filmes, se fosse lançada hoje, seria ainda menos visível do que foi nos anos 1970 – beneficiada à época pela Lei do Curta e que gerou algum rendimento para seus produtores. São filmes de “anti-impacto”, acima de tudo não “empoderados”, que retratam figuras que espelham em tons de melancolia uma condenação existencial à opacidade. O Luiz Melodia retratado pelo delicado curta de Reinaldo Cozer é uma figura cujos segredos e silêncios se preservam como seu tesouro subjetivo, que formam uma outra face dessa modernidade negra cujo legado ainda não foi suficientemente percebido. O caso de Melodia é muito representativo, pois seu trajeto concretamente ligado a artistas da contracultura, como Wally Salomão e Hélio Oiticica, hoje interessa às cinebiografias muito menos do que o enquadramento liberal meritocrata do “negro que superou as condições de pobreza”. Inclusive, do ponto de vista da discussão racial, é marcante o momento em que Melodia descreve sua descrença com o movimento negro organizado (“o movimento black eu acho que é uma coisa que não vai muito pra frente, acho que o movimento é nosso, de todos”). Assim também era, àquele momento, a posição de Vital. Hoje, esses pequenos fatos históricos parecem soar como verdades inconvenientes. E é justoamente esse incômodo em potencial que inviabiliza que mais iniciativas como essa, de recuperação da memória do cinema brasileiro, ocorram. Existe um manancial de filmes nos porões da história, aguardando ganhar a luz do dia, para necessariamente mudar o que pensamos de nós mesmos. No caso dos cineastas negros, essa revelação está fadada a “discordar” do presente.
Os filmes da Boca do Lixo dirigidos pelo ainda vivo Agenor Alves interessam ou são eventualmente perigosos para o projeto de negritude virtual contemporâneo? O curta Um criolo brasileiro (1979), de Quim Negro – caso ainda exista cópia – interessa ou ameaça as bases retóricas das nossas premissas políticas hoje? Esses são os dilemas do contexto em que o trabalho de compromisso histórico da INDETERMINAÇÕES – aqui em parceria com o IMS – representa um desejo raro de confronto com a história e uma disposição ímpar de compromisso e curiosidade perante o que existe. Nesse sentido, o gesto de recuperação do trabalho de Afranio Vital representa um passo muito importante, que mostra uma pontinha de um iceberg ainda plenamente inexplorado, em compasso de espera por interesse institucional. Aguardemos, então, pelo passado que virá.
[1] São Paulo: Laços, 2016.
[2] Disponível em: estranhoencontro.blogspot.com/.
[3] O texto se chama “Caminho para o nada” e faz parte do Caderno de Crítica, editado pela iniciativa Curto Circuito, em 2017, em Belo Horizonte. O caderno 17, do qual o texto faz parte, é dedicado ao cinema de Afranio Vital. Pode ser acessado em: www.curtacircuito.com.br/wp-content/uploads/2022/08/Caderno-de-Cri%CC%81tica-17.pdf?x25788.
