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Uma poética do acaso

19 de novembro de 2025

Nos filmes do sul-coreano Hong Sang-soo, dizem seus críticos, nada acontece. É verdade, se tomarmos esse “acontecer” como sinônimo de grandes lances dramáticos, plot twists ou revelações espetaculares. Tudo em seu cinema se passa nos olhares, nos silêncios e nas entrelinhas. Mas poucas obras são tão ricas em observação da vida, do trabalho do tempo, das belezas e fragilidades humanas.

Com O que a natureza te conta, que entra em cartaz nesta quinta-feira, não é diferente. Conta-se, ou melhor, mostra-se ali, basicamente, um dia na vida de cinco personagens: pai (Kwon Hae-hyo), mãe (Jo Yun-hee), filha mais velha (Park Mi-so), filha caçula (Kang So-yi) e namorado da filha caçula (Ha Seong-guk). Cada um deles tem tempo para nos dar a ver, muitas vezes sem perceber, seu modo de estar no mundo e de lidar com a existência.

O filme já começa com um acaso. O jovem Donghwa chega de Seul trazendo a namorada, Junhee, para um fim de semana na casa dos pais dela. Sua intenção é deixá-la ali e voltar sozinho para Seul. Porém, impressionado pelo tamanho e beleza da casa, construída sobre um morro, decide chegar mais perto e nessa aproximação é surpreendido pelo pai da moça. Meio constrangido, acaba ficando também para o fim de semana.

Estado de poesia

A chegada desse desconhecido age como um elemento químico capaz de provocar reações diversas. Ele é um aspirante a poeta, filho de um advogado famoso, rico e midiático, mas está firmemente empenhado em viver modestamente por conta própria, sem a ajuda do pai. Esse desprendimento parece desconcertar a família, que esperava um bom casamento para a filha caçula.

Desenvolve-se então, dialeticamente, um jogo sutil entre duas visões de mundo: a de Donghwa, que tem pouco apreço por coisas materiais e sobrevive modestamente fazendo vídeos de casamento enquanto busca se manter em constante estado de poesia e integração com as coisas da natureza; e a visão dos pais da namorada, que valorizam o trabalho para a conquista de bens e conforto material. Para eles, o rapaz, que já passou dos 30 anos, é um sonhador acomodado que ainda não enfrentou a dureza da vida – e que só é assim porque tem a retaguarda de um pai rico.

Essas diferenças se revelam aos poucos, a partir de conversas que começam tímidas e cordiais, mas que, sobretudo depois de algumas doses de soju ou de makgeolli, tornam-se cada vez mais francas e reveladoras.

A primeira coisa que chama a atenção do pai de Junghee é o carro do namorado, um Kia de 1996, que ele vê como uma relíquia nostálgica que lhe faz lembrar dos tempos de juventude. Mas esse tempo passou, e agora ele valoriza os carros mais modernos, confortáveis e seguros. Nem ele nem a esposa entendem como o “filho do grande advogado Ha” insiste com aquela lata velha.

Estilo austero

Numa visita ao templo budista local, Donghwa se encanta com um pequeno pagode formado por pedras de tamanhos e formas diversas, mas a irmã mais velha não se conforma: ora, o majestoso e célebre pagode principal é muito mais bonito. Detalhe: não vemos o tal pagode majestoso – e essa sonegação, ao espectador, daquilo que os personagens veem é uma das figuras de estilo mais frequentes do diretor. Não vemos também, ao menos não inteiramente, a fachada da casa que tanto impressionou o rapaz vindo de Seul. Contracampo é algo quase inexistente no cinema do diretor.

No mais, o estilo austero de Hong Sang-soo se faz de longos planos fixos, com poucos movimentos de câmera e uma parcimônia ainda maior no uso de música não-diegética (isto é, não executada em cena) e do zoom. Sempre que se dá uma dessas coisas (música ou zoom), é como uma epifania, um pequeno clarão de entendimento e emoção. Quando ambos os procedimentos se unem, como no último plano deste filme, somos tentados a ver ali uma declaração estética e existencial.

(Entre parênteses, sem querer dar spoiler: é uma cena aparentemente banal, em que o carro de Donghwa está quebrado à beira da estrada. Condensam-se ali todas as linhas de força da narrativa, levando a uma síntese inesperada entre os polos opostos do poético e do prosaico, ou do sonho e da realidade dura – dos cronópios e dos famas, diria Cortázar.)

Natureza e cultura

Faltou dizer que este é talvez o filme em que o cineasta leva mais longe a reflexão sobre a natureza e sua relação com a cultura: o pai de Junghee plantou árvores e criou um florescente jardim em homenagem a sua própria mãe; Donghwa escreve poemas sobre a comoção que lhe causa o desabrochar noturno de uma flor. E a paisagem toda do filme é belíssima.

O cinema de Hong Sang-soo se constrói com uma simplicidade de observação que transmite uma impressão de espontaneidade e improviso. Ainda que se trate de cineastas muito diferentes, vem à mente o comentário de Truffaut sobre os filmes de Jean Renoir: “Tudo se passa como se Renoir houvesse dedicado a maior parte do seu tempo a fugir da obra-prima, pelo que ela oferece de definitivo e paralisado, em benefício de um trabalho semi-improvisado, voluntariamente inacabado, ‘aberto’, para que cada espectador possa completá-lo, comentá-lo ao bel-prazer, interpretá-lo de um jeito ou de outro”.

Nesse sentido, a filmografia prolífica (mais de um longa por ano) de Hong Sang-soo pode ser vista como um work in progress de observação, aprendizado, tentativa e erro. Ao deixar seus atores terem longas conversas diante da câmera, cheias de hesitações, desconfortos e digressões, ao dar vida aos tempos mortos e enquadrar frequentemente “aquilo que ninguém repara”, esse artista singular nos transmite uma notável sensação de frescor e de irrepetibilidade, se é que existe essa palavra. Se filmasse a mesma cena em seguida, sairia outra coisa muito diversa.

Voltando a Truffaut: “Acreditamos ver Renoir organizar tudo aquilo no momento mesmo em que o filme está sendo projetado; por pouco não diríamos: ‘Vou voltar amanhã para ver se as coisas acontecem da mesma maneira’.” Os filmes de Hong Sang-soo suscitam uma sensação parecida. São inapreensíveis, inacabados, falhos. Como a vida.