Clarice Lispector (1920-77), nossa escritora maior, faria 102 anos no próximo sábado, 10 de dezembro. Morreu um dia antes de completar 57. Coincidindo com a efeméride, chega aos cinemas nesta quinta-feira o documentário Clarice Lispector – A descoberta do mundo, da estreante em longas-metragens Taciana Oliveira.
Dois documentos preciosos servem de eixo à construção heterogênea do filme: o registro em áudio do depoimento gravado por Clarice em outubro de 1976 no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e a entrevista concedida por ela em dezembro do mesmo ano ao programa “Os Mágicos”, da TV Cultura.
Em torno das falas não raro desconcertantes da escritora a respeito de sua própria obra e personalidade, a diretora e sua roteirista, a pesquisadora e biógrafa Teresa Montero, construíram um mosaico que inclui depoimentos de parentes (o filho Paulo, a prima Bertha Cohen, uma sobrinha, etc.) e amigos, como a artista plástica Maria Bonomi, os escritores Ferreira Gullar e Nélida Piñon, o jornalista Alberto Dines, o cineasta Luiz Carlos Lacerda e o editor Paulo Rocco. Completam o quadro um rico material iconográfico, imagens dos locais onde Clarice viveu (sobretudo Recife e Rio de Janeiro) e locução de textos seus por atores e sobretudo atrizes.
Mistério insondável
Quem mais fala no filme são os escritores Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna, que acompanharam o depoimento da escritora ao MIS e foram amigos próximos em seus últimos anos de vida.
Os depoimentos são todos relevantes e iluminadores de aspectos da vida e da carreira de Clarice, das angústias do dia a dia até sua relação espinhosa com a própria escrita, da dificuldade de pagar as contas e criar os filhos aos voos da imaginação.
“Com todo perdão da palavra, eu sou um mistério para mim.” A frase clariciana que serve de epígrafe ao documentário dá o seu tom e estabelece seus limites: trata-se de uma figura inapreensível em sua totalidade.
Uma das primeiras declarações que ouvimos dela é quanto à sua fala peculiar, com seus “erres” pedregosos. “Tem gente que acha que é sotaque estrrangeirro, mas é língua prresa. Eu sou inteirramente brrasileirra”, diz encantadoramente a escritora, que nasceu na Ucrânia, mas chegou a Maceió com menos de dois anos e passou a maior parte da infância e da adolescência no Recife, antes de se mudar com a família para o Rio.
Sua ligação profunda com o Brasil – o mar, o sol, a cultura, o linguajar cotidiano – se acentuou nos muitos anos em que ela morou fora do país, acompanhando o marido diplomata. Essa sua brasilidade é comentada por vários dos depoentes.
Maternidade e escrita
Na vida tão rica e variada que se descortina ao longo do documentário, sobressai a relação nem sempre tranquila entre a maternidade e o ofício de escritora. Clarice considerava sua “missão” como mãe mais importante que sua atividade literária, o que explica sua angústia e sentimento de culpa por julgar que não soube lidar a contento com o filho mais velho, Pedro, diagnosticado como esquizofrênico. O assunto é tratado de modo indireto e discreto no filme.
Alguns episódios conhecidos da vida da escritora, como o pequeno incêndio que, provocado por um cochilo e um cigarro, desfigurou uma de suas mãos, são iluminados por vários ângulos, assim como sua profunda amizade e paixão platônica pelo escritor Lucio Cardoso, homossexual convicto. A relação quase umbilical com as irmãs, Elisa e Tania, também é destacada.
Fruto de um paciente trabalho de pesquisa e busca de fontes, o documentário foi realizado em etapas ao longo de quinze anos. Graças a essa circunstância, o filme conta com a participação de diversos entrevistados que já não estão entre nós, como Alberto Dines, Ferreira Gullar, Lêdo Ivo e a grande amiga Sarah Escorel.
O ponto mais vulnerável de Clarice Lispector – A descoberta do mundo, a meu ver, é a tentativa de construir uma poesia audiovisual em diálogo com a obra da autora. Poentes de cartão postal, abuso da câmera lenta e um excesso de música criam uma “gordura” sentimental que certamente tem pouco a ver com a escrita de Clarice.
Nada disso tira, é claro, a importância do documentário e seu interesse não apenas para os aficionados da escritora, mas também para aqueles que ainda não conhecem sua grandeza.
Cinema brasileiro
O CineSesc, em São Paulo, promove até 11 de janeiro sua 23ª Retrospectiva do Cinema Brasileiro, com longas e curtas-metragens produzidos no país nos últimos anos, além de uma homenagem à grande atriz Marcélia Cartaxo, que inclui títulos que vão desde A hora da estrela (Suzana Amaral, 1985) até o recente A mãe (Cristiano Burlan). Uma parte da programação estará disponível também na plataforma digital gratuita do Sesc.
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Publicou, entre outros, André Breton, Brasil: Anos 60 e Futebol brasileiro hoje, e participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80, Folha conta 100 anos de cinema e Os filmes que sonhamos. Veja textos da coluna semanal sobre cinema que assinou no Blog do IMS entre setembro de 2011 e dezembro de 2018.
MAIS
Hora de Clarice 2022 | 10/12/2022, IMS Rio
Exibição do curta-metragem Perto de Clarice, de João Carlos Horta, seguida de conversa com Heloisa Buarque de Hollanda e Teresa Montero, mediada por Eucanaã Ferraz.