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Elogio da traição

14 de abril de 2022

O traidor, de Marco Bellocchio, retoma com força, classe e inteligência o cinema policial-político italiano que incendiou as telas do mundo nos anos 1960 e 70. O filme, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (14 de abril), reconstitui a acidentada trajetória de Tommaso Buscetta (1928-2000), o célebre ex-mafioso que delatou a cúpula da Cosa Nostra siciliana, levando à cadeia 366 pessoas.

A bem da verdade, a narrativa, bastante colada aos “fatos reais”, concentra-se nos últimos vinte anos da vida do “chefe de dois mundos”, com breves e eventuais flashbacks de sua juventude. Foram duas décadas intensas, em que Buscetta viveu na Itália, no Brasil e nos EUA e colaborou com o juiz Giovanni Falcone, contra um pano de fundo de assassinatos, sequestros, torturas e atentados que marcaram a guerra entre facções da Máfia siciliana.

O que chama a atenção no filme de Bellocchio é seu absoluto controle das várias dimensões dessa história – a trama policial, as articulações políticas, o drama pessoal dos principais envolvidos –, bem como as mudanças de tom e de ritmo implicados na encenação.

 

Palermo e Corleone

A sequência de abertura, na festa de Santa Rosália em Palermo, em 1980, coloca em cena os principais personagens e as tensões que explodirão no decorrer da narrativa. Estão ali, supostamente para confraternizar, os chefões das duas grandes facções, a antiga, de Palermo, e a nova, de Corleone, cada um deles com seus parentes (esposa, filhos, irmãos, sobrinhos) e seus “soldados”.

Família e famiglia, parece tudo uma coisa só, como numa sequência de O poderoso chefão. A celebração ostensiva – música, dança, fogos, aclamações – contrasta com os olhares furtivos e os movimentos de bastidores, entrevistos por janelas e frestas de portas.

Buscetta (o excelente Pierfrancesco Favino) está na festa com sua esposa brasileira, Cristina (Maria Fernanda Candido), e os filhos de casamentos anteriores, entre eles Benedetto (Gabriele Cicirello), que toma uns tabefes do pai por estar chapado de droga. Palermo, aliás, era então a “capital mundial da heroína”, e o dinheiro grosso do tráfico atiçou a disputa entre os clãs. Pressentindo a guerra, Buscetta resolve voltar ao Brasil.

 

Buscetta e Falcone

Resumir o que se passa depois disso não chega a configurar um spoiler, mesmo porque os fatos principais estão registrados nas matérias jornalísticas e nos livros de história: com um nome falso Buscetta levava uma boa vida no Rio, regada pelo dinheiro do tráfico de cocaína, quando estourou a sangrenta guerra entre palermitanos e corleonenses, na qual foram mortos dois de seus filhos. Preso no Brasil e extraditado para a Itália, ele decide abrir a boca e colaborar com o juiz Falcone (Fausto Russo Alesi).

De início relutante, Buscetta não se considera um “arrependido”, e muito menos um traidor. Diz que a Cosa Nostra, na qual ingressara aos 17 anos, tinha sido desfigurada pelo tráfico de heroína, que levara os dirigentes a abandonar o antigo código de ética da sociedade. “Foram eles que traíram a Cosa Nostra. No meu tempo não se podia matar crianças, mulheres, juízes”, ele declara a Falcone.

O núcleo do filme, em termos morais, políticos e psicológicos, é o vínculo que se estabelece entre Buscetta e Falcone, pouco importa se tenha sido assim na realidade. “Quem deve morrer primeiro, o senhor ou eu?”, Buscetta pergunta a certa altura ao juiz. “Os mandantes estão em Roma, não na Sicília. Tenho mais medo do Estado do que da Máfia”, diz Falcone em outro momento. De lados opostos da lei, são dois homens que têm contra si uma engrenagem cruel.

 

Do circo à ópera

Mas o ponto mais forte, em termos de encenação, são as audiências no tribunal, que vão da comédia burlesca à tragédia, numa sala semicircular enorme, com os acusados vociferando atrás das grades de suas gaiolas e os magistrados meio perdidos tentando administrar o caos. Bellocchio ironiza o comportamento humano com inserts de animais enjaulados num zoológico (tigre, hiena) e confere um páthos operístico ao drama humano recorrendo à música grandiosa de Verdi (o prelúdio de Macbeth, o “Va pensiero” de Nabucco).

Em contraste, há silêncio e sutileza nas cenas do cotidiano. Vivendo incógnito na Flórida, Buscetta se sente observado por um homem com quem cruza numa ala de supermercado. Em seguida, no mesmo lugar, compra um fuzil automático. Num restaurante com a família, decide voltar para casa antes mesmo de pedir a comida porque um músico vestido de Papai Noel rodeia sua mesa cantando uma canção que diz “sono un siciliano vero”. Ele sente aquilo como uma ameaça. A mesma música é cantada no tribunal por um ex-amigo e atual desafeto, durante o julgamento coletivo.

Se domina os códigos do debate público e do drama privado, Bellocchio também demonstra segurança nas cenas de ação, breves e brutais: um carro metralhado, um braço decepado, um tiroteio numa vidraçaria que lembra vagamente a sequência dos espelhos de A dama de Shanghai, de Orson Welles. O atentado contra o juiz Falcone, perpetrado com um método inusitado, é filmado de modo igualmente original e surpreendente.

Em tempo: a pronúncia correta do nome Buscetta é “Busheta”, como o próprio personagem explica, irritado, a um policial brasileiro que o chamou de “senhor Busqueta”, que aliás foi a forma pudica adotada por nossa mídia para se esquivar de um suposto palavrão. Até um locutor de TV interpretado por Chico Anysio fazia graça com o nome. Mas a vida de Tommaso Buschetta foi tudo menos uma piada.

 

Balada do lado sem luz

Está entrando em cartaz também outro filme extraordinário, Vitalina Varela, do português Pedro Costa, que desenvolve e aprofunda um dos episódios narrados em seu longa anterior, Cavalo dinheiro. Depois de décadas separada do marido que emigrou para Portugal em busca de trabalho, a cabo-verdiana Vitalina Varela consegue finalmente voar para Lisboa, aonde chega três dias depois do enterro do marido.

Vitalina Varela é igualmente o nome da atriz, que vive na tela uma versão ficcional de sua própria história, numa alquimia característica do diretor Pedro Costa. Aos poucos, no seio da comunidade de imigrantes cabo-verdianos, ela descobre uma vida secreta do marido, que tinha uma amante e cometia diversos crimes e delitos.

É um filme sem concessões, duro e sombrio (literalmente, pois quase todas as cenas são noturnas e pouco iluminadas, deixando sempre grandes áreas escuras no quadro). A atmosfera é de luto permanente, e os personagens se arrastam por becos e moradias precárias, onde mal se distingue o espaço interno do externo. São como mortos-vivos ou figuras de pesadelo. A fotografia, excepcional, parece esculpir em luz e sombra os corpos (sobretudo o rosto impressionante de Vitalina), objetos e ambientes, num claro-escuro que remete ao barroco de Caravaggio. Beleza pura.