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Cuidado: produto inflamável

03 de outubro de 2023

Oponentes invisíveis é o filme de outubro da Sessão Cinética, com exibições em 4/10 e 15/10 no IMS Paulista. A sessão do dia 4 será seguida por um debate com Pollyana Quintella e os críticos da revista Cinética.

Oponentes invisíveis (Unsichtbare Gegner, 1977) é o trabalho para cinema no qual a artista VALIE EXPORT sintetizou grande parte da sua obra artística desenvolvida na década de 1970. No seu primeiro longa-metragem, a moldura da ficção distópica misturada à comédia de casal é o espaço perfeito para a insistente imperfeição dos exercícios de construção e desconstrução das convenções que a obra da artista austríaca realiza com brilho e inventividade. A linha que atravessa questões de gênero, representação, geopolítica e materialidade é o espaço de agitação deste divertido e agudo ensaio sobre como as políticas de gênero são um eixo constituinte de tudo que podemos chamar de política.

O filme funciona como uma ácida comédia autorreflexiva, que sintetiza grande parte das preocupações do Acionismo Feminista Vienense: a exploração de uma arte não afirmativa, radical, em que o corpo é o local de experimentação, permutas e desdobramentos constantes. Os créditos iniciais e finais são feitos como um recorte de jornal, com o nome do filme e as informações demarcando o espaço de confusão constante entre imagem, discurso e referente. Explicitando como a mídia, a comunicação política e a história da arte são estruturadas como instâncias de controle biopolítico, particularmente sobre os corpos das mulheres.

Uma das cenas mais notáveis do primeiro longa de VALIE mostra a protagonista Anna (Susanne Widl) maquiando-se em frente ao espelho e o reflexo começa a se mover independentemente dela. O reflexo não reflete mais. Ela para de se maquiar, e a Anna através do espelho continua. As leis da ótica pararam de valer. Esse espírito de insubmissão é o sangue que pulsa em Oponentes invisíveis do primeiro ao último fotograma. Nem um reflexo deve ser obedecido, e assim o filme vai desdobrando os acontecimentos como imagem, como performance, como índice. É bom lembrar que VALIE EXPORT é o nome que a artista escolheu para si, a partir de uma marca de cigarros e também buscando se livrar do sistema de nomeação que a fazia carregar o nome de seu pai e de seu marido como marcas obrigatórias. Portanto, seu ofício é justo esse, interromper os sistemas de replicação da norma e os expor ao ridículo que fica escondido sob sua invisibilidade automatizada. Como os homens que andam pelas ruínas escuras de Viena pateticamente se masturbando.

O estudo do ridículo da masculinidade tem aqui um de seus grandes capítulos da história do cinema. O companheiro de Anna, Peter, é material de um inventário de condutas que descrevem o comportamento dos homens como um sistema de ações e discursos patéticos e agressivos, cuja autoconsciência é nula. Ele nunca para de explicar o que é certo – bufamente autoconfiante – e dizer que Anna é quem está errada, que ela é louca, sem nunca sequer considerar ouvir o que ela diz. um exemplar bem típico de nossa performance masculina, assim como ainda vigora plenamente em nossos dias.

Oponentes invisíveis é, portanto, um estudo político do sistema comum que liga patriarcado e sistemas de representação. O realismo dos fotogramas em movimento é constantemente quebrado, transformado em fotografia still, ou em transmissão de vídeo. Essa passagem entre meios é essencial para o trabalho de arqueologia iconoclasta que EXPORT realiza. Num dos primeiros momentos em que Anna aparece em seu laboratório fotográfico, ela coloca em banho revelador uma foto com uma vulva em close, evocando seu clássico trabalho Genitalpanik (1969), em que a artista se vestia com uma roupa preta, com uma arma na mão, entrava numa exibição de cinema e sua roupa deixava sua vulva à vista.

 

Cena de Oponentes invisíveis, de VALIE EXPORT

O cinema sempre foi um elemento constituinte da obra de VALIE. Não só seus mais de 30 filmes, como Cortando (Cutting, 1967-1968) ou a A prática do amor (The Pratice of Love, 1985), exibidos em diversos festivais de cinema, mas também em trabalhos icônicos como seu Cinema do toque (Touch Cinema, 1968), em que a artista acoplava uma caixa preta em seu busto, com cortininhas típicas de cinema, e a performance consistia que as pessoas enfiassem a mão na caixa e a encarassem por alguns segundos, desafiando ao mesmo tempo o dispositivo voyeurístico do cinema e invertendo as relações de olhar e de agência. A mesma agenda estrutura essa comédia screwball que marca sua estreia em longas. O filme trabalha o tempo todo por inversões para dinamitar as convenções “invisíveis” que submetem e condicionam os corpos, os espaços e as condutas, em especial das mulheres e dos sujeitos historicamente subalternizados.

Porém, o filme realiza essa tarefa política de destruição constante com um humor e uma imparável inventividade. Cada sequência parece ter uma lógica própria de encenação ou montagem. VALIE cria uma espécie de sistema de relações que, para se manter vivo, não para de diferir de si mesmo. A cena em que Anna e Peter (vivido pelo homônimo artista Peter Weibel) discutem sua relação, ao lado de dois monitores de vídeo que repetem suas falam com atraso de alguns segundos, não só denuncia a força de padronização das imagens em relação às práticas sociais, mas transforma essa história numa trágica comédia farsesca e dadaísta.

O que estabelece este filme como um clássico desconhecido e necessário da história do cinema é sua ação constante de demolição, explicitação e deriva. Ao mesmo tempo que estuda e desnuda os padrões e as ações do patriarcado, da identidade “hipócrita” de seu país e das forças do capitalismo europeu, EXPORT mantém sua radicalidade política ao recusar-se a dar lições, incendiando qualquer normatividade. A tarefa contracultural é necessariamente um trabalho afirmativo de indefinição, de fugitividade e desmantelamento da estrutura dos sentidos fixados. O significado é também uma forma de opressão sobre as possibilidades do corpo e da cognição. O drama do corpo é também um drama do sentido, do limite inflamável da significação. E é isso que essa farsa distópica ensaística não para de refazer e performar diante de nós. Afinal, não há cinema político sem violência plástica.