Os Fabelmans, de Steven Spielberg, é três coisas ao mesmo tempo: romance de formação, melodrama familiar e reflexão sobre a natureza do cinema. É sobretudo este último aspecto que nos interessa aqui.
O cinema marca presença em outros grandes filmes de inspiração autobiográfica, como Amarcord, de Fellini, Os incompreendidos, de Truffaut, ou Esperança e glória, de John Boorman. Mas em Os Fabelmans seu papel é de protagonista: da primeira à última cena, tudo passa por ele.
Na saga pessoal do menino judeu Sammy Fabelman (Mateo Zoryan/ Gabriel LaBelle), dos sete aos dezessete anos, do Arizona a Hollywood, o cinema desdobra suas inúmeras dimensões e possibilidades.
Tudo começa com um trauma de infância: na tela grande, as imagens de um desastre de trem em O maior espetáculo da terra (1952), de Cecil B. De Mille, lançam o pequeno Sammy num estado de perturbação que produz febre e pesadelos. Se o cinema ocasionou o choque, é também o cinema que propicia a cura. Munido de sua câmera super-8 e de seu trenzinho de brinquedo, Sammy reproduz o desastre e, ao filmá-lo, acaba por “domesticá-lo”, apaziguando seu espírito.
A montagem de um mundo
O cinema reorganiza um universo em desarranjo, transforma o caos em espetáculo catártico. Se olharmos bem, muito da cinematografia de Spielberg nasce dessa ideia.
Mas ao longo do filme a câmera de Sammy, trocada alguns anos depois por uma de 16 milímetros, vai cumprir outras funções e desvendar outras realidades, sobretudo depois de ganhar a companhia de uma pequena moviola. No cinema de Spielberg, a montagem é essencial. É o contracampo que confere a cada imagem seu peso dramático ou cômico, ou até mesmo seu sentido. A reação do personagem que vê é tão importante quanto o que é visto. A montagem cria um mundo.
A profundidade de campo também pode ser reveladora. Um filme caseiro de acampamento da família expõe inadvertidamente o caso extraconjugal de Mitzi Fabelman (Michelle Williams), a mãe de Sammy. Mais um trauma, mas desta vez o cinema, sozinho, não será capaz de curá-lo. As imagens em movimento podem muito, mas não podem tudo.
A moviola citada acima ganhará papel de destaque alguns anos depois, quando o tímido e franzino Sammy sofre com o bullying dos colegas valentões e o antissemitismo reinante no colégio. A filmagem de uma excursão de final de curso, na praia, converte-se, mediante a montagem, numa sátira que expõe o ridículo de cada um.
Talento e sentimentalismo
Escrevi uma vez, décadas atrás, que os filmes de Spielberg são sempre uma queda de braço entre o imenso talento do diretor e sua propensão para o sentimentalismo e a pieguice, com resultados diversos. Em Os Fabelmans o talento leva grande vantagem, embora o sentimentalismo esteja presente no modo enfático e redundante como é tratado o drama familiar.
O que equilibra o melodrama é a presença pontual de personagens cômicos, como o excêntrico tio Boris (Judd Hirsch) e a avó paterna de Sammy (Jeannie Berlin), espécie de protótipo da mãe judia dominadora. Ambos parecem saídos de um filme de Woody Allen.
Se, em suas duas horas e meia, Os Fabelmans nunca chega a aborrecer, é porque há sempre ideias e soluções visuais brilhantes, puramente cinematográficas, desde as imagens projetadas na mão do pequeno Sammy até o magnífico plano final, em que um sutil movimento de câmera responde ao conciso conselho dado por John Ford (David Lynch, num grande achado de casting) ao jovem aspirante a cineasta.
Assim como John Ford, o nome Steven Spielberg, goste-se dele ou não, é sinônimo de cinema. Em vista disso, o vídeo que antecede o longa-metragem, em que o cineasta agradece a presença do público e enaltece a “experiência única” de ver filmes coletivamente na sala escura, soa como um lamento e um pedido de socorro. Se, tomado isoladamente, Os Fabelmans é uma ode ao cinema, em conjunto com esse prólogo ele adquire o peso de um réquiem.
Regra 34
Está entrando em cartaz nos cinemas brasileiros um filme de uma originalidade desconcertante: Regra 34, de Júlia Murat. Sua protagonista é a jovem negra Simone (a excelente Sol Miranda), assistente de defensoria pública que, em sua vida privada, experimenta relações eróticas intensas, incluindo exibições de sadomasoquismo em sites pornográficos.
Com a mesma coragem e integridade com que tenta defender mulheres vítimas de violência doméstica, Simone vive até o fim suas fantasias e experiências no plano sexual. O filme de Júlia Murat alterna essa exploração pessoal da sexualidade com uma discussão sutil sobre os dilemas da aplicação justa da lei numa sociedade injusta (em termos sociais, raciais e de gênero). O grande mérito da diretora é não estabelecer uma relação mecânica entre esses dois planos, nem “explicar” um pelo outro.
Se a lei deve contemplar o conjunto dos cidadãos e tipificar ações, a experiência individual é irredutível e, em certa medida, incompreensível. Como escreveu Drummond, “todo ser humano é um estranho ímpar” – e Regra 34 é a tradução cinematográfica disso.