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Os fantasmas nos divertem

12 de setembro de 2024

Está nos cinemas do país um bom antídoto contra o sentimento de fim de mundo que paira sobre as cidades e o campo na forma de nuvem de fumaça. É a comédia/fantasia/musical Os fantasmas ainda se divertem, de Tim Burton.

Nessa retomada da fábula do pós-vida centrada no descabelado Beetlegeuse/Beetlejuice (Michael Keaton), alguns dos personagens principais do primeiro filme estão de volta, 36 anos depois, encarnados pelos mesmos atores e atrizes: Lydia Deetz (Winona Ryder), sua madrasta Delia (Catherine O’Hara) e, claro, o próprio Beetlejuice.

Não cabe aqui resumir o delirante entrecho dessa continuação, mas apenas dizer que o trânsito incessante entre o mundo dos vivos e o dos mortos (com bons momentos na antessala entre ambos) se dá num contexto em que Lydia se tornou uma estrela da TV e da internet ao abordar, justamente, fenômenos de comunicação com o além-túmulo. Da casa assombrada do primeiro Beetlejuice ao castelo de Drácula na Transilvânia, tudo virou turismo e espetáculo.

Com essa estratégia, Tim Burton ficou à vontade para realizar uma feroz comédia autoirônica e autoparódica, com uma verve e uma energia raras no cinema atual.

 

Princípio do prazer

Houve quem criticasse, talvez com razão, o excesso de personagens e subtramas, bem como as mudanças súbitas de gênero e de ritmo. Mas o fato é que o diretor e seus roteiristas tiveram como norte um único princípio, o da diversão, que se sobrepõe à lógica, ao equilíbrio e às boas maneiras. É um filme de fantasia anárquica, na linha que vem desde Méliès e passa pelos irmãos Marx e pelo grupo Monty Python.

Para isso, as piadas e brincadeiras se sucedem como se passassem diretamente de um brainstorming entre amigos inventivos para a tela, sem uma autocensura intermediária, sem uma avaliação do que é “conveniente” ou não.

Algumas ideias são especialmente inspiradas. Um exemplo: como colocar em cena o personagem Charles Deetz, se o ator que o encarnava, Jeffrey Jones, aposentou-se depois de cumprir pena por pornografia infantil? A solução: ele aparece numa sequência hilária de animação e, depois de morto, sem a cabeça (que foi engolida por um tubarão).

Esse espírito galhofeiro, que não hesita nem mesmo diante do humor negro, está presente também no personagem de Willem Dafoe, o policial-ator Wolf Jackson, que durante uma filmagem foi vítima da explosão de uma granada que deixou à mostra uma parte do seu cérebro. “Pensei que fosse uma granada fake, cenográfica”, diz ele, no que foi visto como uma referência ao tiro acidental com que Alec Baldwin (ator do primeiro Beetlejuice) matou no set uma diretora de fotografia.

Tudo é motivo para a fantasia e para o humor, inclusive os trocadilhos verbo-visuais. Numa cena, Beetlejuice diz: “Façam como eu, spill your guts” (figurativamente: “desabafem”, “desembuchem”), e em seguida suas vísceras saltam da sua barriga, numa realização literal da metáfora. Do mesmo modo, “Soul Train”, nome de um famoso programa televisivo de música negra (sobretudo soul), vira o “trem das almas” numa impagável e vibrante sequência musical.

 

Pós-vida aleatório

No processo, como que de passagem, a sátira atinge um pouco de tudo: o turismo descerebrado, o mercado de arte, a insanidade da internet. A autoironia está presente o tempo todo, seja pela reciclagem de cenas de outros filmes de Burton – a personagem Delores (Monica Belucci), ex-amante de Beetlegeuse, remete à boneca humana costurada de O estranho mundo de Jack; o sexo selvagem e violento da noite de núpcias de Beetlejuice lembra uma cena análoga de Sombras da noite –, seja pelos momentos em que os atores parecem falar diretamente com o público. Quando vai parar numa lua de Saturno, a adolescente Astrid (Jenna Ortega) diz: “Este pós-vida é um tanto aleatório”, quase um comentário sobre o vale-tudo imaginativo do próprio filme.

No cinema contemporâneo há vários cineastas, de Terry Gilliam a Yorgos Lanthimos, passando por Guillermo Del Toro e Paolo Sorrentino, que apostam numa estética do excesso e da fantasia exacerbada. Comparadas aos filmes de Tim Burton, as obras desses outros autores parecem pesar toneladas, talvez pela carga de sua pretensão à “profundidade”.

A aspiração de Burton, ao que tudo indica, é mais simples e ao mesmo tempo mais difícil: colocar a imaginação a serviço do humor e do prazer, algo que atinge um ápice sublime na sequência do casamento ao som improvável de “MacArthur Park”. Leveza e graça são atributos de poucos artistas. Tim Burton está entre eles.

Em tempo: para quem não viu o primeiro Beetlejuice (Os fantasmas se divertem) ou quer ver de novo para reavivar a lembrança, o filme está disponível no canal de streaming Max.