Estreia finalmente nos cinemas nesta quinta-feira (11 de agosto) Pacificado, um dos filmes mais viscerais e envolventes já ambientados numa favela brasileira. Por uma ironia do destino, seu diretor, Paxton Winters, é um norte-americano nascido no Texas, que antes de se estabelecer por um tempo no Morro dos Prazeres, no Rio de Janeiro, viveu mais de uma década na Turquia.
Em linhas muito resumidas, conta-se ali a volta à favela de um homem negro de meia-idade, Jaca (Bukassa Kabengele), “rei da malandragem” que, a exemplo do “Charles, anjo 45” de Jorge Benjor, “foi tirar sem querer férias numa colônia penal”. Antes das férias forçadas, que duraram catorze anos, Jaca era o chefão incontestável da comunidade.
Agora, ele se defronta com uma filha de 13 anos, Tati (Cássia Nascimento), que nasceu durante sua ausência, e com um contexto totalmente mudado, em que o novo chefe do tráfico, Nelson (José Loreto), impõe medo e obediência aos moradores com base na pura truculência.
O ano é 2016. Com o final das Olimpíadas do Rio, a Unidade de Polícia Pacificadora instalada temporariamente no local será desativada, o que aumenta a tensão reinante e a apreensão dos moradores. Os mais antigos esperam que Jaca reassuma o comando e coloque ordem no bairro. Tati também deseja isso, como modo de superar a penúria em que vive com a mãe (Débora Nascimento) e que a obriga a vender balas em ruas e ônibus.
O grande feito do diretor Paxton Winters, a meu ver, foi o de entrelaçar organicamente fundo e figura, isto é, combinar o drama pessoal dos protagonistas (o veterano Jaca e a menina Tati) com a crônica da vida na favela – suas agruras e suas diversões, sua vitalidade irreprimível e seus jogos de poder. O perigo e a festa convivendo intimamente.
Espaço labiríntico
Logo nas primeiras cenas, em que Tati vai à casa de uma amiga, define-se um espaço labiríntico e incerto de ruelas, rampas, escadas e lajes, em que não se sabe ao certo onde acaba a via pública e começam as residências e onde estas se separam umas das outras. A favela se revela como um mundo em permanente movimento e construção, que fascina, desafia e amedronta na mesma medida. Só seus habitantes conhecem os caminhos e os códigos que lhes permitem trafegar por ali com desenvoltura.
Distantes dos estereótipos, os personagens, mesmo os mais secundários, são matizados e ambíguos, pulsam e respiram como gente de verdade. Nos três anos em que viveu no Morro dos Prazeres o diretor ouviu muitas queixas de moradores quanto à maneira como eram retratados na maioria dos “filmes de favela”. Winters procurou então ser fiel ao que testemunhava no dia a dia, e cercou-se de gente do próprio local na formação da equipe e do elenco do filme.
Apostou, por exemplo, na estreante Cássia Nascimento, que se revelou um talento extraordinário na difícil composição da adolescente Tati, com todas as nuances de alguém que mal saiu da infância e se vê no tiroteio cruel da vida adulta. No outro polo, Bukassa Kabengele, tarimbado ator de filmes como Carandiru e séries como A casa das sete mulheres, Carcereiros e Os dias eram assim, exibe uma segurança e um vigor notáveis em sua atuação contida, sem histrionismo e sem gestos supérfluos.
A situação vulnerável da mulher, a cultura funk, as relações com a polícia e com o “asfalto”, a hierarquia do poder, a economia local, tudo isso se dá a ver de modo “natural”, sem a ênfase didática que nos acostumamos a ver em obras do gênero.
Robin Hood dos morros
Entre muitas cenas admiráveis, suas são particularmente reveladoras da personalidade do protagonista Jaca e das condições em que se move. Na primeira, ele carrega nas costas uma geladeira usada – para instalar em sua casa ou para consertar, não importa. Ele sobe a custo uma escadaria íngreme. A certa altura a câmera sobe e avança morro acima, deixando-o para trás e mostrando a extensão interminável da escada, quase numa figuração do calvário que seria sua vida de trabalhador dentro da lei.
A outra sequência sublinha seu papel de “Robin Hood dos morros”, para voltar à canção de Benjor. Com um amigo, Jaca desce ao asfalto e assalta um caminhão-baú carregado de eletrodomésticos. Eles sobem à favela com o caminhão, abrem a porta da carroceria e passam a distribuir a carga aos moradores: liquidificador e micro-ondas para as donas de casa, celulares para os adolescentes, tablets para as crianças supostamente estudarem, etc. Distribuição selvagem de renda e bem-estar.
Uma palavra sobre o título. Pacificado pode se referir ao morro, ocupado por uma UPP, e ao mesmo tempo ao protagonista Jaca, em sua relação com a comunidade, com a filha e consigo mesmo. No primeiro caso, o adjetivo é irônico. No segundo talvez não seja.
Em tempo: realizado em 2019, Pacificado ganhou naquele ano o prêmio principal no Festival de San Sebastián, na Espanha, e o prêmio do público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Um dos produtores do filme é o norte-americano Darren Aronofsky, diretor de O lutador, Cisne negro e Noé, entre outras superproduções que nada têm a ver com o cinema sem firulas praticado em Pacificado.