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O século Pasolini

03 de março de 2022

Comunista, católico e homossexual, Pier Paolo Pasolini, que faria cem anos neste sábado, dia 5 de março, foi um dos grandes artistas e intelectuais do século XX, seja na poesia, no romance, no cinema ou no ensaio. Sua obra radical e multifacetada está mais viva do que nunca. Para celebrar o centenário, a plataforma Mubi lança este mês três filmes essenciais do diretor: Accattone (1961), O evangelho segundo São Mateus (1964) e Édipo rei (1967). Várias de suas outras obras estão disponíveis em DVD e no YouTube.

A escolha da Mubi foi muito feliz. Os filmes programados desenvolvem três das paixões duradouras de Pasolini: o subproletariado da periferia romana, o cristianismo primitivo e a mitologia pagã, pré-cristã. Embora situados em épocas e locais muito distantes uns dos outros, há entre os três uma comunicação subterrânea, e sobretudo a constância de um gesto ao mesmo tempo de amor aos deserdados e de revolta contra o poder que os deserda.

 

Accattone

Ambientado nas miseráveis borgate romanas, que na época não eram muito diferentes das nossas favelas, o longa-metragem de estreia de Pasolini, Accattone, retrata um mundo social semelhante ao de seus romances Ragazzi di vita e Una vita violenta. Vittorio Cataldi (Franco Citti), vulgo Accattone (mendigo), é um dos jovens desocupados que vivem de pequenos delitos e trambiques na periferia de Roma. O próprio Accattone oscila entre a cafetinagem e os furtos.

Há, em princípio, um realismo social herdeiro do neorrealismo, inclusive no plano formal: filmagem em locações, fotografia em preto e branco com luz predominantemente natural, utilização de não-atores, produção despojada. Mas o modo como Pasolini perscruta moralmente seus personagens, em especial o protagonista, eleva esse drama social à categoria da tragédia. Por meio do comportamento errático, impulsivo, desesperado e, no limite, autodestrutivo de Accattone expressa-se uma intensa carência espiritual, uma dolorosa ausência de Deus.

O que confere essa estranha atmosfera mística (no sentido amplo da palavra) aos acontecimentos é, a meu ver, a tensão entre a conduta sórdida dos personagens (estupros, roubos, espancamentos), num ambiente de penúria material, com a alta espiritualidade da música de Bach (“A paixão de São Mateus” e um adágio do “Concerto de Brandenburgo”). Assim, a briga entre dois brutamontes que se engalfinham no chão de terra de uma favela adquire uma força trágica transcendente.

A última imagem do filme – um homem algemado fazendo o sinal da cruz – resume de certa forma essa tensão entre a realidade mais brutal e a aspiração a alguma forma de redenção, de comunhão com a divindade ou o absoluto.

Pouco antes desse final extraordinário, entretanto, três ladrões pés-de-chinelo sentados numa sarjeta gargalham irresistivelmente do chulé de um deles – numa hilaridade genuína e contagiante que faz lembrar a frase de Murilo Mendes: “Em geral, o estado dos homens é uma agonia alegre”. No livro Pier Paolo Pasolini – Estudos sobre a figura do intelectual, o professor e pesquisador Vinícius Nicastro Honesko chama a atenção para a proximidade entre esse sentimento muriliano e a ideia pasoliniana de abgioia (“com alegria”).

 

Evangelho popular

Se em Accattone busca-se o espiritual no humano, em O evangelho segundo São Mateus de certa forma o que se procura é o humano no divino. Ainda que o Jesus Cristo de Pasolini (o espanhol Enrique Irazoqui, dublado por Enrico Maria Salerno) opere milagres (como a cura de um leproso e a multiplicação de pães e peixes), enfatiza-se a sua condição terrena, carnal, com as contradições e vulnerabilidades correspondentes.

É um Cristo dos pobres, um Cristo ecumênico, cuja opção pelos excluídos é enfatizada pelas locações e pelos atores e figurantes, muitos deles (inclusive alguns apóstolos) encarnados pelos mesmos não-atores que viveram os marginalizados de Accattone. A Palestina da periferia do Império Romano é simulada aqui em aldeias áridas e pobres do sul da Itália, em especial na incrível região de Basilicata, com suas construções que parecem esculpidas no barro do chão.

A trilha musical cria uma conexão invisível entre as mais diversas realidades “periféricas”. A “Paixão de São Mateus”, de Bach, está de volta, mas ouvem-se também a eletrizante “Missa Luba”, com o coral congolês Les Troubadours, o blues “Dark was the night, cold was the ground”, de Blind Willie Johnson, e o spiritual negro “Sometimes I feel like a motherless child”. Os ostensivos anacronismos musicais reforçam a ideia de um Cristo dos oprimidos de todo o mundo.

Esse cristianismo essencial corresponde, na forma, a um despojamento estético quase absoluto, com um preto e branco límpido, ausência de efeitos visuais, diálogos objetivos, cortes secos na montagem. O discurso mais longo – o extraordinariamente poético “Sermão da montanha” – é filmado com uma sucessão de trechos com o mesmo enquadramento, com Jesus no primeiro plano e o mar ao fundo, mudando praticamente apenas a luz, de acordo com o momento do dia.

Na época, entusiasmado, Glauber Rocha escreveu: “O Cristo de Pasolini é forte, viril, sem complacência para opressores e canalhas. (...) Este Cristo desmistificado e revolucionário parece ter saído das encíclicas de João XXIII”. O filme, aliás, é dedicado ao “papa comunista”, que tinha morrido em 1963.

Algumas curiosidades sobre o elenco: além da mãe do diretor, Susanna Pasolini, no papel de Maria, estão o filósofo Giorgio Agamben (como São Filipe) e a escritora Natalia Ginzburg (como Maria di Betania, irmã de Lázaro).

 

Édipo rei

As conexões subterrâneas prosseguem em Édipo rei, cujo protagonista é o mesmo Franco Citti que estreara no cinema como o cafetão Accattone. Aqui, ele é o desafortunado filho de Laio, rei de Tebas que mandou matar o filho ainda bebê para que não fosse cumprida a profecia segundo a qual este, ao se tornar adulto, assassinaria o pai e desposaria a mãe, Jocasta (Silvana Mangano). Só que o bebê não morreu e o resto da história é, por vias tortas, o cumprimento da profecia.

Consagrado em inúmeras narrativas antigas, sobretudo na tragédia de  Sófocles, o mito de Édipo deu pano para muitas mangas, inclusive para uma das teorias mais revolucionárias de Freud. Pasolini acrescenta camadas de leitura à narrativa ao acrescentar um prólogo e um epílogo à tragédia propriamente dita. No prólogo, ambientado na Itália da época do fascismo, o bebê é filho de um jovem militar. No epílogo, já com os olhos arrancados, é o Édipo adulto que vaga por ruas e fábricas da Itália dos anos 1960 até chegar ao gramado cercado de árvores onde o bebê vê sua mãe dançar na primeira cena. É o mesmo homem? Não importa: Édipo é o mito que atravessa os séculos e propõe o desafio do autoconhecimento, do desvendamento dos desejos mais recônditos.

Se no Evangelho a Palestina bíblica era encenada no sul da Itália, em Édipo rei a Grécia antiga é reconstituída principalmente no Marrocos e na Toscana. Seus figurantes são mouros, negros, europeus morenos do sul, um amálgama multiétnico que parece fundir todos os povos mediterrâneos. Mais uma vez o despojamento estético dá o tom. Em vez de um templo, é sob uma árvore, no meio de um descampado, que Édipo interroga o oráculo sobre sua origem e ouve o terrível vaticínio que o leva a fugir de sua cidade e dos supostos pais.

Apesar de ser em cores, há em Édipo uma notável semelhança estética com o ambiente do Evangelho: vales áridos, aldeias de pedra, gente rústica. A narrativa seca é no estilo que o próprio Pasolini definia como “bárbaro e arbitrário”. Pela primeira vez num filme seu, o cineasta aparece como ator, no papel de um sacerdote irado. Apareceria também em Decameron e Os contos de Canterbury.

Em Édipo, de certo modo, cruzam-se vários dos temas que inquietavam Pasolini: a religião, a sexualidade, os sistemas de poder. Triplamente herege – na política, na religião e na moral –, Pasolini desafinou o coro dos contentes – e também o dos descontentes – de seu tempo. Comunista rechaçado pelo partido, católico renegado pela Igreja, inimigo de todos os poderes estabelecidos, crítico de uma sociedade destituída de justiça e do senso do sagrado, Pasolini foi uma voz poderosa e solitária.

Foi assassinado aos 53 anos (talvez a mando de outros) por um ragazzo di vita como os que ele amou e retratou. Em seu funeral, o escritor Alberto Moravia declarou com emoção e veemência: “Perdemos um poeta. E poetas não são tantos no mundo, não nascem mais que três ou quatro em um século”.