Pedágio, de Carolina Markowicz, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (30/11), é um dos grandes filmes brasileiros do ano. Seu maior feito, a meu ver, é o de equilibrar, na justa medida, a atenção ao ambiente (geográfico e social), aos personagens e à ação, de modo que seus temas – a espinhosa passagem da adolescência à idade adulta, a famigerada “cura gay”, a alienação religiosa, a fronteira tênue entre a moralidade e o crime – não parecem impostos de fora para dentro, mas, ao contrário, brotam “naturalmente” desse todo orgânico.
No cerne do drama há uma mãe e seu filho. A mãe solo Suellen (Maeve Jinkings) trabalha como caixa num pedágio de rodovia e sua a camisa para pagar as contas e bancar um curso de inglês para o filho de 17 anos, Tiquinho (Kauan Alvarenga). O rapaz gosta de cantar e dançar. Produzido e maquiado, ele dubla em seu quartinho grandes divas do jazz e posta as lives na internet. Alarmada, Suellen diz que ele está “a um passo de se tornar um traveco”.
Cenário infernal
Dessa tensão central provém toda a ação. Uma colega de trabalho sugere um curso de “cura gay” oferecido pela igreja neopentecostal que ela frequenta. O curso é caro, ministrado por um pastor vindo de Portugal (Isac Graça). Suellen recorre então ao namorado (Thomas Aquino) metido em atividades ilícitas, para usar um eufemismo. Tudo se passa no cenário infernal de Cubatão, com suas gigantescas chaminés cuspindo eternamente fogo e fumaça.
Essa sinopse um tanto brutal atropela a sutileza com que o filme desenvolve suas situações. A expressão “cura gay”, por exemplo, jamais é proferida. O pastor-terapeuta fala em “processo de ressignificação energética”, e suas aulas são um misto de pseudociência com leitura enviesada da Bíblia. Com toda a seriedade, a assistente do pastor explica à assustada Suellen a urgência de colocar o filho na linha: “Exu arrenda o corpo da pessoa até os 17 anos. Passou disso, é usucapião”. O humor surge naturalmente, sem a necessidade de sarcasmo ou caricatura. O absurdo está no próprio real.
O título sugere mais de um sentido: paga-se um pedágio na passagem da adolescência à vida adulta (Tiquinho), da honestidade ao crime (Suellen), da virtude ao pecado (a amiga evangélica).
Na economia narrativa de Pedágio, nada sobra, nada falta. Os diálogos são enxutos, precisos. Numa conversa séria com o filho, Suellen tenta adverti-lo: “Você acha que é fácil a vida lá fora para alguém como você?”. O rapaz responde perguntando: “Lá fora, mãe?” Em sua concisão, é o diálogo mais cortante de todo o filme.
O ângulo do olhar
Sem ser excessivamente decupado, Pedágio flui em planos “necessários”, imediatamente legíveis tanto do ponto de vista da informação como da emoção a ser expressa. Numa cena, ao voltar para casa no fim do dia, Tiquinho pede para a mãe se postar de um certo modo, com o cigarro na boca, diante de uma torre que solta chamas ao fundo. Na foto que ele faz com o celular, parece que ela acende o cigarro na chaminé. Efeito bobo, que vemos a toda hora na internet, mas que, no contexto, diz o seguinte: o enquadramento é tudo.
O ângulo do olhar determina o que se vê, e isso vale para todos os temas enfeixados pelo filme. O principal deles talvez seja a perigosa proximidade entre as certezas morais e o crime – assunto premente num mundo em que a “defesa da honra e da moral” leva a tantos assassinatos, sobretudo de mulheres, homossexuais e pessoas trans.
A diretora Carolina Markowicz, que em seu longa-metragem de estreia (Carvão, 2022) já mostrara talento narrativo e um olhar original, atesta em Pedágio um domínio pleno de seus meios.
A organicidade do filme é fruto do entrosamento entre roteiro (da própria Carolina), direção e elenco. Se a competência e a versatilidade de Maeve Jinkings já são bem conhecidas dos cinéfilos, o jovem ator negro Kauan Alvarenga surpreende pelo brilho, vigor e segurança em seu primeiro longa-metragem. Merece destaque também a atuação de Aline Marta Maia, no complexo papel da amiga crente (mas nada santa) de Suellen. Não sem razão, os três foram premiados no recente Festival do Rio.