Pessoas são arquivos. Especialmente em culturas que tiveram a sorte de não terem sido, no milênio passado, invadidas, esvaziadas e violentadas pela colonização europeia. Nessas culturas afortunadas, prevaleceu a tradição oral. A distribuição e troca de conhecimento se deram de maneira radicalmente democrática. Culturas em que tudo é audiovisual. Tudo é Cinema.
Lúcio Flávio, filme brasileiro de 1978, dirigido por Hector Babenco e agora restaurado em 4k, é um filme sobre a caça a pessoas arquivo. Personagens marginalizados que precisam ter sua voz calada para que possa prevalecer a cultura, o modo de vida que o colono trouxe para nossa terra.
A própria lógica de funcionamento da vida na colônia caça o tempo todo filmes brasileiros. Pois são eles também arquivos vivos, cheios de coisas fundamentais a serem ditas. Quando uma cinemateca pega fogo, é tão queima de arquivo quanto a polícia subir o morro para matar pobres. Nesse sentido, todo o cinema brasileiro é, no fundo, pobre, marginal... e perigoso.
Lúcio Flávio, o personagem real, era em sua época o mais famoso líder de quadrilha de assaltos a bancos, em plena ditadura militar, quando militantes saíam às ruas à noite para pixar muros com frases do tipo "Fora FMI" ou "Os bancos são os verdadeiros assaltantes do Brasil".
Loiro do tipo galã, imediatamente se tornou produto rentável para a mídia na época. Somado-se ao fato de o sujeito colecionar um incontável número de fugas de presídios e cadeias dos quais nenhum preto conseguia fugir, era renda líquida certa para os jornais, já em busca de cliques e likes desde aquela época.
Nada contra produtos. Babenco também fez do seu Lúcio Flávio um maravilhoso produto. Reginaldo Faria, olhos azuis, quase o tempo todo sem camisa, dispõe corpo e alma de forma visceral, sumindo esplendidamente no personagem, tornando-se o Robin Hood que os críticos à ditadura militar precisavam para falar com o público dito geral, que fez filas nos cinemas de rua e transformou o filme em um dos recordistas de bilheteria de nossa história.
A história sombria como um filme de terror, sufocante como um saco amarrado na cabeça, é inteligentemente toda contada de modo solar, palatável, com resultados estéticos quase próximos a O demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1968), de Jean-Luc Godard. Se um policial sobe um morro para torturar em um bar, em plena luz do dia, o personagem de Grande Otelo, a cena é antes de tudo brejeira.
Otelo e Milton Gonçalves são os atores negros do elenco. Cada um de um lado da história. Otelo é o guia espiritual do candomblé de Lúcio Flávio, enquanto Milton é o policial corrupto que o quer caçar.
Apenas neste século a filmografia brasileira passou a representar personagens negros de forma não caricata. Os artistas que até este século tiveram acesso aos meios de produção são pessoas que não sabem corretamente a definição de, por exemplo, Exu. Não tiveram acesso a estes saberes ou, quando tiveram, não souberam entender para além da visão Pierre Verger da cultura afro-diaspórica. Mas, no Lúcio Flávio de Babenco, temos dois pontos positivos em relação a tão importante assunto (posto que brasileiros pretos são arquivos que ninguém quer de fato acessar).
O primeiro ponto é a colocação do personagem de Milton Gonçalves como um policial de classe média (ainda que baixa). Terno cinza, sempre cumprindo ordens, é importantíssima a cena em que seu personagem, ameaçado de morte por Lúcio Flávio em um banheiro de bar, afirma ter mulher e filhos. É tudo o que Lúcio Flávio não tem. Há um rápido e sutil jogo de inversão de poderes ali: Lúcio percebe na hora o valor da vida daquele sujeito. Milton Gonçalves nos dá uma especial verdade na intepretação de algo tão rápido e aparentemente pequenino no filme. Um grande ator. Uma grande pessoa. Grande arquivo.
O segundo ponto é Grande Otelo. Uma vez o ator me fez passar um dia de cama, deprimido, com o peso do mundo sobre mim. Foi quando, em uma entrevista, já bem próximo da morte, ele revelou que nunca havia interpretado um texto escrito por um negro ou uma negra. Otelo morreu semanas depois.
Peço licença para repetir. Grande Otelo, um dos maiores brasileiros que já viveram, um dos maiores atores que já vimos em todo o mundo, que viveu e morreu sem nunca interpretar um texto, uma linha sequer, escrito por roteirista preta ou preto.
Sou um roteirista preto. E, segundo as tradições de nosso povo, Grande Otelo vive em mim. Segue o texto.
No filme, o personagem de Otelo é uma mistura de pai e oráculo de Lúcio Flávio. A cena em que contracenam falando sobre futuro e o poder dos orixás e guias no destino do herói, em um barraco limpo (parabéns aos envolvidos) no alto do morro é maravilhosamente antigrega, uma vez que na Grécia há uma imposição de destinos, enquanto nas filosofias africanas sagrado é seguir acasos e fluxos. Foi na rota comercial do Mediterrâneo, que liga o país de Platão ao norte da África, que se roubou, sem copyright, toda a cosmogonia da região. Iansã tornou-se Afrodite, Oxóssi tornou-se Apolo, Oxalá tornou-se Zeus etc.
Todos os mais de um milhão de espectadores que foram ao cinema assistir ao filme já sabiam o destino de Lúcio Flávio. Mas aí é que entra mais um dos grandes e raros atributos da obra. O filme de Babenco é cinema de gênero. Especialmente de um gênero que nossa filmografia não explora em toda sua polifonia: o filme da ação. Hoje, temos uma fórmula ainda mais engessada do que a do cinema estadunidense. Lúcio Flávio de Babenco dá uma aula de como fazer um filme de gênero sem parecer um clone.
Lúcio Flávio, o personagem e a pessoa real, era, na época, o maior dos arquivos vivos. O segredo de suas incontáveis fugas de presídios, bem como o sucesso em assaltar bancos curiosamente pouco policiados, devia-se ao fato de que tudo era antes combinado com a polícia. Ele se arriscava, fazia o serviço, ficava alguns meses preso para despistar, dividia o dinheiro com a polícia, mas ficava sempre com sobras. Enquanto a polícia enriquecia. Em determinado momento, o movimento de corrupção da polícia carioca chega até esferas mais altas, que resolvem criar pequenas milícias, chamadas de Esquadrão da Morte, que, na prática, assassinava negros e pobres nas periferias da cidade.
Lúcio Flávio é sobre isso. Um sujeito que viu a cultura da milícia nascer e resolveu contar tudo o que sabia, enquanto ainda era arquivo vivo. O que contou ao escritor José Louzeiro tornou-se o filme de Babenco, que comunicou ao Brasil inteiro o ovo que ali a serpente botava.
Babenco e equipe, todos arquivos vivos, passaram a ser imediatamente ameaçados pelos esquadrões da morte, homens brancos, bem-vestidos, de terno e anéis maçônicos. Hoje, às vésperas das eleições, somos todos Hector Babenco e equipe.
* Dodô Azevedo é roteirista e diretor de cinema, mestre em Letras pela PUC-Rio, professor de Filosofia e romancista.