Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

Pau pra toda obra

01 de dezembro de 2022

Com o Pinóquio de Guillermo del Toro e Mark Gustafson, em cartaz nos cinemas do IMS a partir do dia 8, encerra-se, pelo menos por enquanto, a surpreendente “onda Pinóquio” que em menos de três anos deu à luz três versões cinematográficas diferentes da fábula criada em 1881 pelo italiano Carlo Collodi. As outras duas foram de Matteo Garrone e Robert Zemeckis.

São três filmes completamente diversos, na forma, na técnica, no tom e na ambientação. O livro original, publicado incialmente em capítulos numa revista infantil, apresenta uma miríade de situações e reviravoltas que permite as mais variadas escolhas e interpretações. O desenho animado clássico de Walt Disney, de 1940, fixou o personagem no imaginário contemporâneo, criando ao mesmo tempo algumas balizas difíceis de contornar.

A mais fraca das versões atuais, a meu ver, é a de Zemeckis (com Tom Hanks no papel de Gepeto), justamente por se manter demasiado presa à versão animada Disney, em termos de enredo, caracterização dos personagens e até música. Está em cartaz, aliás, no Disney Plus. Sobre a interessante transposição de Matteo Garrone, com Roberto Benigni como Gepeto, escrevi no ano passado.


Política e moral

Vamos então ao Pinóquio de Guillermo del Toro, que em breve deve sair dos cinemas para o streaming (Netflix). Se as outras duas versões mesclam encenação “em carne e osso” com imagens geradas por computador (CGI), aqui a opção foi pela animação em stop motion, com as vozes a cargo de atores famosos (Ewan McGregor, David Bradley, Cate Blanchett, Tilda Swinton, Christoph Waltz).

É a versão que mais toma liberdades em relação ao texto de Collodi, no que se refere a enredo, personagens e, sobretudo, ambientação. O Pinóquio de Del Toro vem ao mundo na Itália fascista de Benito Mussolini, e essa circunstância não apenas politiza a fábula como também aprofunda sua moral.

Se no livro – e nas adaptações cinematográficas anteriores – “ser um bom menino” era não beber, não fumar e não se divertir, aqui o valor moral consiste em rejeitar a conduta bélica, falocêntrica e competitiva imposta pelo fascismo e erigir em seu lugar uma ética da solidariedade e do afeto.

Não por acaso, o episódio da “ilha dos prazeres” (ou “terra dos brinquedos”, no livro) é substituído por um treinamento militar mirim, e o amigo Pavio (Espoleto em outras versões), em vez de bad boy e má companhia, é aqui o filho mal-amado de um chefe fascista. Pinóquio supera a rusga inicial, simpatiza com o garoto, e a amizade entre os dois os fortalece mutuamente, desarmando o mecanismo fascista do ódio. A relação pai-filho adquire centralidade, servindo de elo de empatia entre filhos carentes. De modo significativo, o grilo falante atua mais como consciência de Gepeto do que propriamente de Pinóquio.

 

Morte e humor

Comentou-se que a versão Del Toro é a “mais sombria”, talvez porque a morte seja o seu tema recorrente, mas há na abordagem do tema certa leveza, não desprovida de humor. Uma grande sacada são as lebres vestidas de esqueletos que jogam cartas enquanto esperam a chegada de novos mortos, numa espécie de funerária do além.

Del Toro, que costuma abusar da fantasia barroca mesmo em seus filmes “para adultos” (O labirinto do fauno, A forma da água, O beco do pesadelo), está aqui em seu elemento, e conta com a ajuda de um especialista em animação, Mark Gustafson.

Se o Pinóquio de Zemeckis, de um modo geral, apenas “moderniza” a versão Disney, sem mexer em seus fundamentos morais e estéticos, a do diretor mexicano ousa subvertê-la para manter viva a potência do texto original e dar-lhe novos sentidos. Uma de suas travessuras é a de brincar com o gênero musical: toda vez que se esboça uma cantoria, ela é abortada por algum evento cômico ou dramático. Del Toro, ao que parece, não quer acalentar seu público, mas mantê-lo de olhos bem abertos.