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Planalto em chamas

23 de fevereiro de 2023

Na falta de definição melhor, Mato seco em chamas*, que entra em cartaz nesta quinta-feira (23), pode ser descrito como um faroeste urbano-futurista protagonizado por mulheres. Outros o chamaram de “Bacurau do cerrado” e “Mad Max do Terceiro Mundo”. Mas o filme dirigido por Joana Pimenta e Adirley Queirós é um objeto não identificado que desborda de todas as tentativas de apreendê-lo.

O local é o Sol Nascente, bairro pobre de Ceilândia, no Distrito Federal. Território da periferia da periferia e, paradoxalmente, vizinho do poder central do país. O tempo em que se passam os fatos narrados é incerto, ou melhor, embaralhado. Apesar das referências a datas precisas (a principal delas é o período eleitoral de 2018), os avanços e recuos da narrativa constroem uma temporalidade própria, movediça. O país criado pelos diretores é ao mesmo tempo arcaico e futurista, como costuma acontecer nos filmes de Adirley Queirós (Branco sai, preto fica, Era uma vez Brasília).

É ali que um grupo de mulheres lideradas pela jovem negra Chitara (Joana Darc Furtado) perfura um duto subterrâneo de petróleo e constrói sua própria destilaria rudimentar, vendendo gasolina barata diretamente para uma legião de motoboys da região. Essas mulheres são quase todas ex ou futuras prisioneiras, e uma delas, Andreia (Andreia Vieira), chega a se candidatar a deputada pelo Partido do Povo Preso.

Fantasia e realismo

Em torno dessa situação central o filme aponta para várias direções, misturando gêneros como o faroeste, o documentário, o filme de gangue, o drama social, tudo isso revirado vertiginosamente a certa altura pela metalinguagem, que faz o espectador rever com outros olhos e outro entendimento o que tinha visto até então. Não chega a ser um spoiler dizer aqui que as pessoas que atuam no filme não são atores e atrizes profissionais e que seus personagens incorporam grande parte de suas vivências reais, com sua crua e expressiva linguagem pessoal.

O atrito entre fantasia desmesurada e lastro realista que caracteriza o cinema de Adirley Queirós encontra aqui um ponto literalmente de combustão: o fogo é o elemento presente desde a primeira imagem. E a substância que move boa parte da trama é o combustível. As heroínas, aliás, são chamadas de “gasolineiras”. Tudo parece prestes a explodir em chamas a todo momento.

O país retratado por Adirley Queirós e Joana Pimenta é desmesurado, violento, sujo, selvagem – e assim é a estética da dupla. A refinaria artesanal operada por Chitara e seu bando, feita de ruidosas engenhocas de madeira, tem seu oposto complementar no carro blindado supostamente high-tech das forças de segurança. O imaginário de ficção científica terceiro-mundista é trazido a toda hora de volta para o chão de terra das ruas sem calçamento, para as casas sem reboco, os bairros sem saneamento.

Adirley Queirós é o criador dessa poética visceral, sem concessões ao bom-gostismo e às convenções estético-narrativas estabelecidas. Em Mato seco em chamas, onde quem manda são as mulheres, ele conta com duas parceiras essenciais para dar corpo a seu projeto: sua codiretora Joana Pimenta, cineasta portuguesa que é também a diretora de fotografia de Mato seco e de Era uma vez Brasília, e a montadora Cristina Amaral.

A fotografia de Joana Pimenta tira o máximo proveito dramático da contraluz (do fogo, dos faróis de motos, dos relâmpagos noturnos, dos fogos de artifício, das luzes distantes da cidade) e sobretudo das nuvens de poeira levantadas por carros e motos. Uma visão infernal, apocalíptica.

Arestas realçadas

A montagem de Cristina Amaral, por sua vez, evita o conforto e a fluidez das narrativas convencionais, realçando as arestas “desconjuntadas” do estilo de Adirley e permitindo a observação demorada de detalhes da vida da comunidade. Um culto neopetencostal, um show da banda Muleka sem Calcinha numa boate de beira de estrada, uma manifestação bolsonarista em Brasília, tudo isso é mostrado em duração quase exasperante. A vida real pulsa e respira nessas imagens, com todas as suas contradições.

A edição por vezes é brutal, como os fatos narrados. Uma sequência de festa num ônibus em que mulheres cantam, dançam, bebem e se bolinam, é sucedida sem transição pela imagem de outro ônibus, transportando presas uniformizadas e taciturnas. O elo entre uma e outra cena, filmadas ambas mais ou menos do mesmo ângulo, é a presença de Léa (Léa Alves da Silva), meia-irmã de Chitara e presidiária na “vida real”.

Há achados sutis de encenação. No interior do carro blindado, um policial militar ensina aos subordinados um cumprimento em torno do sinistro lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, e a coreografia que acompanha o enunciado termina com a saudação nazista. Não é preciso dizer mais nada.

Adirley Queirós e Joana Pimenta assumem claramente o ponto de vista dos humilhados e ofendidos, mas sem lamúrias ou apelos sentimentais. Sua aposta é na imaginação e na luta. É um cinema de combate, sem deixar de ser divertido, poético e espetacular.

Faltou dizer que Mato seco em chamas ganhou o prêmio principal no festival Cinéma du Réel, na França, por ser, segundo o júri, “um filme radical e apocalíptico que usa os gêneros cinematográficos como uma arma para romper o encanto do presente; pela intensidade e combatividade de seus personagens em seu contexto político”. Pensando bem, é uma boa definição.

* O filme Mato seco em chamas está em cartaz nas salas de cinema do IMS.