Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

Preservar Recife

06 de dezembro de 2023

Texto originalmente publicado no catálogo I Jornada Brasileira de Cinema Silencioso (São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2007, p. 41, 76-78.

 

O destino mais frequente dos filmes silenciosos brasileiros foi o desaparecimento. Não faltaram motivos para isso, a começar pelos incontáveis incêndios em produtoras, laboratórios e cinemas. Cópias eram perdidas nas mãos de pessoas encarregadas de exibi-las em outras cidades, e que sumiam sem dar mais notícias. Sobretudo havia o descaso e a falta de interesse em preservar um material pouco ou nada valorizado já em sua época e que, com a consolidação do cinema sonoro, tornou-se ainda mais anacrônico, sem valor comercial nem público interessado. À falta de arquivos especializados, os rolos de filmes ficaram entregues ao acaso. Guardadas por realizadores, financiadores ou pessoas envolvidas na produção, movidos por razões sentimentais ou por valorizar o registro histórico, raramente recebendo cuidados adequados de preservação – aliás, que cuidados eram esses? –, inúmeras latas ficaram esquecidas em salas, armários ou em um canto qualquer, e algumas delas, muito poucas, foram encontradas a tempo e em condições de escapar da perda total.

A pesquisa sistemática empreendida pelo Censo Cinematográfico Brasileiro – em permanente atualização – indica que dos quase 4 mil filmes produzidos no Brasil até 1930 apenas 7% foram preservados, alguns na íntegra e muitos em fragmentos. Levando em conta essa estatística, a produção pernambucana entre 1924 e 1930 possui proporcionalmente um expressivo número de títulos preservados. Segundo um cálculo aproximativo e considerando o atual estágio tanto das pesquisas quanto dos trabalhos de preservação, poderíamos estimar que cerca de 30% dessa produção sobreviveu de alguma maneira, entre filmes digamos completos, fragmentos ou apenas sequências de fotogramas.

Na sucessão de iniciativas que contribuíram para a conservação desses preciosos 30%, talvez a primeira e mais decisiva tenha acontecido em torno da criação, em 1943, do Museu-Cinema.[1] Havia no Recife o Cine Siri, formado por Pedro Salgado Filho, que promovia em sua casa exibições privadas de filmes antigos brasileiros e estrangeiros. Jota Soares, quando entra para a diretoria, sugere a mudança de nome para Museu-Cinema. Com novas instalações, mas ainda na casa de Salgado, começam as projeções dos filmes silenciosos pernambucanos, cercadas de solenidades e convidados ilustres.

Segundo Jota, ainda antes mesmo do Cine Siri, o grupo formado por ele, Salgado, Luiz Felipe Vieira e Geraldo Melo ficara sabendo que alguns filmes da Aurora haviam sido comprados pelo escritório de uma distribuidora a 5 mil réis o quilo, vendidos não se sabe por quem. Jota adquirira uma cópia de A filha do advogado, enquanto os amigos compram Retribuição, Jurando vingar e Aitaré da Praia. Com a divulgação de suas atividades, o Museu-Cinema recebe outros títulos como Revezes... e Pernambuco e sua Exposição de 1924 (que Jota chama de Recife de 1924). Com exceção de A filha do advogado, que continua com Jota, os demais títulos ficam sob os cuidados de Pedro Salgado Filho. Com sua morte em 1947, os materiais são entregues ao Departamento de Documentação e Cultura da Prefeitura do Recife.

É na Prefeitura que Caio Scheiby, conservador adjunto da Cinemateca Brasileira, encontra esses filmes em 1960, quando visita o Recife para fazer uma conferência. Interessado no trabalho de prospecção e preservação de filmes, Scheiby dá início às negociações para o envio dos filmes da produção silenciosa pernambucana a São Paulo. Em 1962, os filmes são restaurados e contratipados pela Cinemateca, cujos serviços de laboratório estavam então sob responsabilidade de Josef Reindl. O relatório anual do arquivo indica a duplicação de Jurando vingar, Retribuição, Revezes..., Recife 1924, Carnaval, Dança, amor e ventura e Aitaré da Praia. Com exceção do título Carnaval (provavelmente Carnaval de 1926 em Recife), a lista coincide com aquela discriminada por Jota Soares. Concluída a duplicação, o material original em nitrato começa a ser devolvido à Prefeitura do Recife a partir de 1964.

Em outubro de 1967, Jota Soares entra com pedido de guarda das cópias, que segundo ele estavam abandonadas nas prateleiras da Secretaria de Educação e Cultura (antigo Departamento de Documentação e Cultura). As cópias que recebe no ano seguinte compõem, junto com A filha do advogado e outros documentários em seu poder, o acervo cinematográfico do arquivo do realizador, comprado em 1984 pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), de Recife. Segundo a pesquisadora Regina Behar, o acervo incluía cópias dos naturais Veneza americana e As grandezas de Pernambuco e dos filmes de enredo Retribuição, Jurando vingar, Aitaré da Praia e também Revezes... (restaurado pela Cinemateca Brasileira e exibido no Recife em 1990).[2]

Em 1980, a Embrafilme adquire de Jota os direitos para exibição não comercial de A filha do advogado. O acordo viabiliza a restauração e duplicação da cópia original em nitrato (nos laboratórios da Cinemateca Brasileira), permitindo o acesso ao filme, relançado em 1981.

Ainda na década de 1980, surge um “novo” filme silencioso pernambucano: O progresso da ciência médica em Pernambuco – dirigido pelo médico Octavio de Freitas e filmado por Edson Chagas –, do qual não se tinha notícia até que, em 1986, o pesquisador Luiz Maranhão Filho descobre uma cópia em nitrato pertencente à antiga Faculdade de Medicina do Recife. Enviado à Cinemateca Brasileira, o material foi duplicado e incorporado à Filmografia Brasileira.

Desde a aquisição do Arquivo Jota Soares, a Fundação Joaquim Nabuco mantinha os nitratos dos filmes pernambucanos guardados em sala climatizada, separados do restante dos filmes em acetato. Não havia condições, entretanto, de realizar trabalhos de catalogação e difusão dos filmes sem comprometer sua integridade física. Contatos estabelecidos entre a Fundaj e a Cinemateca Brasileira a partir de 2002, inicialmente dentro do projeto Censo Cinematográfico e depois por meio do SiBIA (Sistema Brasileiro de Informações Audiovisuais), resultaram na transferência dos nitratos para a Cinemateca, para serem duplicados dentro do projeto Resgate do Cinema Silencioso Brasileiro, financiado pela Caixa Econômica Federal.

Transportados em caminhões climatizados, os nitratos chegaram à Cinemateca em duas remessas, entre dezembro de 2006 e janeiro de 2007. O exame inicial e a descrição das imagens dos rolos, tarefas realizadas em mesa enroladeira, serviram para identificar e conhecer melhor os materiais, e fazer o cotejo de informações com as anotações nos rótulos dos estojos e nas listagens da Fundaj.

Como era de se esperar, o exame direto trouxe surpresas e decepção. Esta ficou por conta dos fragmentos de História de uma alma, apenas alguns palmos de fotogramas passíveis somente de duplicação fotográfica, o que serve para atiçar ainda mais a curiosidade em relação a essa superprodução de tema religioso. De Jurando vingar, uma das primeiras produções de enredo da Aurora-Film, conhecia-se apenas a metade final. A cópia em nitrato da Fundaj está completa e apresenta belas viragens que as técnicas modernas de restauração permitem duplicar.

A maior surpresa do conjunto foi a descoberta de algumas sequências de No cenário da vida, considerado totalmente perdido. Pela listagem, a lata conteria um rolo de Recife no Centenário da Confederação do Equador, mas a informação não tinha suporte. Algumas imagens, especialmente as cenas de dança no cabaré, indicaram que se tratava de No cenário da vida, suspeita confirmada ao se fazer a comparação com as fotos do filme publicadas por Jota Soares em crônicas da série “Relembrando o cinema pernambucano”. Alguns trechos, porém, estavam em avançado estado de deterioração, a exemplo da última sequência, em que mal se pode acompanhar, em meio a imagens decompostas ou desaparecidas, o passeio dos namorados e o romântico beijo final.

Os nitratos dos naturais da Pernambuco-Film confirmaram outra suposição: a de que Veneza americana não era um filme inédito realizado pela produtora, mas, na verdade, uma compilação de cenas de seus dois longas anteriores: Recife no Centenário da Confederação do Equador e Pernambuco e sua Exposição de 1924. Do primeiro, apenas um rolo se individualiza no lote da Fundaj, provavelmente um trecho que ficou de fora da compilação. Quanto a Pernambuco e sua Exposição de 1924, o que dele se conhecia era uma cópia bastante escura, nada comparável à nitidez e às belas viragens da cópia em nitrato de Veneza americana.

A abordagem técnica do conjunto de rolos exigiu cuidados para que a restauração não implicasse em traição ao que se acredita ser a forma original dos títulos a se duplicar. Além da manipulação original dos produtores, que montavam e remontavam sequências de imagens para oferecê-las a eventuais compradores, o lote da Fundaj apresentava um problema adicional. Com o objetivo de realizar documentários sobre o movimento de produção silenciosa pernambucana, algumas cenas haviam sido retiradas das cópias originais e não repostas em sua posição original. Um trabalho cuidadoso foi feito para comparar emendas e cortes na película, com o objetivo de recolocar as imagens em sua posição original. Em alguns poucos momentos, não havia pistas (imagens adjacentes, resquícios de cola nas emendas) que possibilitassem sua localização anterior. Na oportunidade – na verdade única, em Veneza americana – fizemos um estudo da progressão narrativa do documentário e, seguindo sua orientação geográfica, inserimos algumas imagens dentro das coordenadas topográficas de Recife.

O exame dos materiais provocou relutâncias e decisões sujeitas a posteriores discussões. Um exemplo: um rótulo trazia a identificação Cais do porto. Num primeiro momento acreditamos, pelas molduras dos intertítulos, que se tratava apenas de reinserir as imagens em Veneza americana. Ledo engano. A comparação dos materiais indicou que isso não era possível. Algumas imagens eram muito semelhantes entre os dois materiais, mas obviamente não se encadeavam ou substituíam. Por outro lado, embora a cerimônia de inauguração de armazéns do porto do Recife fosse a mesma, os materiais tinham pequenas diferenças narrativas. Decidimos, portanto, até segunda ordem, considerar Cais do porto um título suplementar à filmografia silenciosa pernambucana.

Momento de efetiva recusa a qualquer interferência editorial foi relativo a Jurando vingar. Além dos cinco rolos de cópia que aparentemente constituíam a integralidade do filme, havia rolinhos com imagens que obviamente faziam parte de suas cenas. Examinando essas imagens soltas e os rolos do filme, constatou-se que havia sido feita – sabe-se lá quando e por quem – uma intervenção na montagem, com o objetivo, por exemplo, de dar mais agilidade à luta de Júlio (Gentil Roiz) com os vilões que mantinham Bertha (Rilda Fernandes) trancafiada. Reinserir essas imagens na sequência implicaria em uma interferência que, pelo menos nesse momento, não se colocava. Decidiu-se então, ao menos provisoriamente, não reintegrar esses poucos metros de imagens ao que parece ser a última montagem do filme.

A preparação física dos materiais antes de sua duplicação foi árdua. Cinara Dias, Taciana Machado e Júlia Caiubi Novaes passaram semanas refazendo emendas e perfurações para permitir que os materiais pudessem passar pela copiadora de janela molhada (que diminui, mas não elimina, o incômodo visual provocado pelos riscos nas cópias). O ressecamento e o encolhimento dos rolos de Jurando vingar obrigaram Carlos Eduardo de Freitas, no momento da copiagem, a recolher manualmente os metros e metros de película original que passavam pela máquina. O cotejo dos originais com os materiais duplicados demandou horas de Luísa Malzoni para o estabelecimento de mapas de copiagem que possibilitassem a tiragem de cópias próximas do original tingido e virado.

De uma coisa estamos certos: o conjunto de filmes silenciosos pernambucanos recebeu extremo cuidado e apresenta, no momento atual [2007] e com a tecnologia possível no Laboratório da Cinemateca Brasileira, o melhor resultado alcançado na restauração de qualquer filme brasileiro anterior a 1930.


 

[1] A história do Museu-Cinema é relatada por Jota Soares no documento “Dados sobre minha vida, destinados aos arquivos da CINEMATECA BRASILEIRA, de São Paulo, por solicitação do Dr. PAULO EMILIO SALLES GOMES”, com data de 15 de dezembro de 1964.

[2] Behar, Regina Maria Rodrigues. “Caçadores de imagem”: cinema e memória em Pernambuco (tese de doutorado), ECA/USP, 2002.