Prisão nos Andes, de Felipe Carmona, está para o cinema político chileno como Argentina, 1985, de Júlio César Strassera, está para o argentino? Não exatamente.
Ambos tratam da punição dos responsáveis pelas maiores atrocidades cometidas por suas respectivas ditaduras militares, mas desde ângulos muito distintos e lançando mão de recursos cinematográficos bem diversos. Se o filme argentino põe seu foco na saga de um juiz para a condenação dos acusados, o de Felipe Carmona mostra que, ao menos no caso chileno, a punição não foi tão rigorosa como deveria.
Ambientado em 2013, quarenta anos depois do golpe que derrubou Salvador Allende e instaurou a ditadura de Pinochet, Prisão nos Andes reconstitui as condições em que estavam reclusos no Penal Cordillera, um complexo penitenciário especial nas proximidades de Santiago, cinco dos mais sanguinários militares do regime.
Nostalgia dos “bons tempos”
O que vemos na tela parece menos uma prisão do que um spa, ou no mínimo um asilo de idosos de elite, em que os guardas penais são menos carcereiros do que cuidadores e camareiros. Bosques, piscina, campos esportivos, salão de jogos – é nesses ambientes que os velhos facínoras passam seus dias e noites, remoendo nostalgias dos “bons tempos” e praguejando contra os “comunistas” que tomaram conta do país. Um conserta carrinhos de brinquedo, outro coleciona pássaros, etc. Com suas manias e idiossincrasias, podem ser ridículos – mas seguem sendo tiranos.
Uma entrevista televisiva de um dos internos, o general Manuel Contreras (Hugo Medina), ao revelar descuidadamente as mordomias do local e ao reafirmar a versão pinochetista da história, causa indignação pública e suscita uma ordem para a transferência dos condenados. O que veremos, então, serão os últimos dias dessa prisão peculiar.
Mais do que na denúncia dos privilégios concedidos àquele bando de torturadores, o interesse do filme, a meu ver, está nas relações que se estabelecem entre os presos e seus supostos guardas. Há um misto de fascínio, submissão, raiva e temor no modo como os jovens carcereiros interagem com seus prisioneiros.
Relações inerciais de poder
Os velhos militares seguem vociferando ordens, cultivando caprichos, arrotando superioridade. Um deles, o brigadeiro Miguel Krasnoff (Bastián Bodenhöfer) chega a comandar com disciplina militar os treinamentos físicos dos jovens guardas e os usa como auxiliares em seus próprios exercícios de tiro de escopeta. Tudo isso faz pensar nas reverberações duradouras dos fatos históricos, numa espécie de prolongamento inercial das relações de poder, mesmo com a mudança das condições objetivas.
Do ponto de vista dramático, o protagonista desse filme coral é o guarda Navarrete (Andrew Bargsted), que se equilibra precariamente entre a subordinação servil aos presos, a obediência à direção do presídio e o relacionamento homoerótico secreto com um colega. O desfecho violento dessa tensão talvez sugira uma relação de contágio entre a brutalidade dos internos e seus carcereiros/cuidadores.
Do ponto de vista da linguagem narrativa, Prisão nos Andes também contrasta com Argentina, 1985. Se o filme argentino se mantém nos limites de um suspense realista “clássico”, o chileno trafega entre o realismo, o terror e a alegoria, com direito a um intermezzo cômico em preto e branco, mimetizando o cinema mudo, protagonizado pelo próprio Pinochet.
Chama a atenção também o tratamento visual das imagens. Uma iluminação penumbrosa, mesmo nas cenas diurnas, faz com que muitas vezes os personagens sejam pouco mais que vultos na contraluz ou parcialmente sombreados. E há quase sempre uma porção do quadro que permanece no escuro. A própria mata que envolve o complexo mais parece um bosque fantasmal de conto de terror.
Monstros à espreita
Em conjunto com as bruscas elipses de tempo e espaço, que nos instigam a supor o que não é mostrado, esses procedimentos estéticos têm um efeito geral inquietante, sugerindo que a realidade nunca é totalmente apreensível, está sempre mais além, numa zona de sombra difícil de elucidar. É dessa escuridão que se alimentam os monstros que, de tempos em tempos, vêm nos assombrar. No caso brasileiro, cabe lembrar, ninguém foi punido pelas atrocidades cometidas pela ditadura militar de 1964-85. E há quem defenda impunemente um retorno das trevas.