Propaganda política é um vídeo singular, simultaneamente um ato artístico e um ato político, que documenta, acontece e intervém num contexto histórico determinado: as eleições presidenciais norte-americanas. Desde 1984, dois artistas conceituais, o catalão Antoni Muntadas (Barcelona, 1942) e o norte-americano Marshall Reese (Washington D.C., 1955), reúnem e editam, a cada eleição presidencial nos Estados Unidos, um arquivo de material audiovisual que documenta a publicidade política produzida e difundida pelas campanhas dos candidatos às eleições. Os artistas partem do ano de 1952, época em que a televisão começava a ser uma presença em todas as casas dos eleitores. O vídeo é reapresentado, sempre atualizado, nos Estados Unidos e em outros países, em sessões especiais, na semana que antecede cada eleição.
Sendo os EUA o país que mais protagoniza, desde a segunda metade do século 20, um imperialismo econômico, militar e cultural que condiciona e determina a vida em todo o planeta, tudo o que acontece na política norte-americana afeta de modo mais direto ou indireto a vida de todas e todos nós. É impossível não sentir que também deveríamos poder votar nessas eleições, atendendo ao modo como elas marcam uma história do mundo, exemplificando aquilo a que Noam Chomsky chamou de “manufatura do consenso”, que afirma e impõe uma ideologia que afeta todo o planeta. Quando assistimos a esses anúncios políticos, nos vemos também como alvo deles, mesmo não sendo cidadãos norte-americanos. E eles originam “réplicas sísmicas” em muitos outros países, como poderá constatar agora o público brasileiro que terá acesso ao vídeo.
A contaminação da propaganda política pelas estratégias da publicidade tem um longo histórico, desde o cinema de propaganda soviético até esses filmes e vídeos produzidos num país onde a comunicação política reduz as ideias a slogans, como produtos destinados a manipular e a convencer o eleitorado, entendido como público-alvo consumidor. Uma história política se confunde com uma história da publicidade e da mídia dominante, desde as origens da televisão até a internet e as redes sociais no nosso tempo, não tratadas pelos autores, que pertencem a uma geração cuja juventude foi mais marcada pela televisão. Isso não diminui, no entanto, a contemporaneidade e a acuidade deste trabalho, que permanece extremamente útil enquanto crítica cultural do modelo ideológico e político que formata uma percepção do mundo, ampliando o nosso entendimento da comunicação que encontramos, seja na televisão, seja nas redes sociais.
Os artistas compilaram e “colaram” conjuntos de anúncios para televisão produzidos para cada eleição. A maioria deles representa os maiores partidos em contenda no sistema eleitoral americano: democrata e republicano. Por vezes, encontramos anúncios de candidatos contra outros candidatos do mesmo partido, exemplificativos do processo de escolha por meio de eleições primárias dentro dos dois maiores partidos. Candidaturas independentes são raras e não dispõem, na maioria dos casos, da possibilidade econômica de utilizarem o recurso televisivo. Frequentes vezes são também anúncios que atacam o adversário, buscando a polarização e o maniqueísmo, apesar de recorrerem, independentemente de candidatos e partidos, a um discurso comum de exaltação de valores assumidos como “americanos”, proclamados universais: a família, a liberdade, a segurança, a democracia, a crença na América. É muito curioso como recorrem a um discurso contra a guerra, no contexto histórico das guerras que os EUA, maior potência belicosa no século 20, originaram por todo o mundo. As imagens frequentes de explosões nucleares ou da guerra do Vietnã são disso um exemplo claro. Vários candidatos afirmam a sua condição de “heróis de guerra”, acusando os seus oponentes de traição ou falta de coragem. Muita dessa propaganda busca construir o medo no eleitorado, seja em relação ao adversário, seja em relação aos “perigos” de um mundo ameaçador. Quase todos os anúncios são protagonizados por homens brancos, o que é muito esclarecedor da questão racial ou do discurso dominante sobre o papel da mulher no discurso político dominante norte-americano. Esta surge sobretudo apresentada como esposa, mãe ou filha do candidato.
Os artistas não intervêm nem comentam os anúncios apresentados, que se sucedem, repetitivos, autorreferenciais, repetindo os mesmos temas e assuntos até a exaustão. Há algo de “pornográfico” nessa repetitividade e recorrência temática. De certo modo, esses anúncios são casos exemplares de “pornografia política”. O excesso e a repetição escondem algo na sua recursividade. Em suas estratégias de propaganda, eles se impõem e excluem quaisquer condições de verificação. A sua compilação e apresentação exaustiva abre, no entanto, a possibilidade de uma interpretação crítica que os ultrapassa nos seus objetivos imediatos. O trabalho não tem fim: no momento em que este texto é escrito, desconhecemos ainda a nova versão que Muntadas e Reese estão preparando, incluindo imagens da atual campanha eleitoral.
Propaganda política é um vídeo que convoca a inteligência crítica do espectador, abre um espaço para a dissidência e para a denúncia, ao demonstrar o uso manipulatório da informação e da comunicação. A uniformidade predominante dos conteúdos e das estratégias visuais das candidaturas em competição sublinham a suspeita de que a informação e as “verdades” transmitidas não são mais do que a construção de uma grande mentira. Nesta época de fake news, em que a internet e as redes sociais representam uma escalada da mentira política, este vídeo demonstra como tudo começou e continua. Propaganda política afirma-se como uma obra relevante no campo da midia art, originando uma crítica cultural pela documentação histórica, que faz os espectadores considerarem o papel da mídia na política e os seus efeitos na democracia. Numa das suas obras mais conhecidas, Muntadas alerta: “Atenção! Percepção requer envolvimento.” Todas e todos sairemos um pouco mais envolvidos com o mundo em que vivemos, e um pouco melhor preparados para sobreviver às suas ilusões, depois de assistir a este magnífico exemplo de “artivismo” na produção artística contemporânea.
Antoni Muntadas é um artista que convoca no seu trabalho temas sociais e políticos, a partir de uma análise crítica da informação e da comunicação, articulando a relação entre o espaço público e privado dentro de contextos sociais e comunicacionais específicos e problematizando o papel do artista e da arte na sociedade contemporânea.
Marshall Reese é um artista que trabalha com vídeo, redes de informação, hardware e software personalizados, edições e eventos temporários de arte pública. Desde meados dos anos 1980, tem trabalhado com Nora Ligorano, adotando a assinatura LigoranoReese. As suas obras são uma investigação permanente sobre o impacto da tecnologia na sociedade e a retórica da política e da cultura visual na mídia.