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Ninguém entra, ninguém sai

21 de dezembro de 2023

Com o lançamento de Propriedade, de Daniel Bandeira, o cinema brasileiro encerra o ano com fecho de ouro, ou melhor, de chumbo: é um filme duro, violento e impiedoso como o abismo social que retrata. O avesso perfeito das mensagens sorridentes e edificantes de Natal.

As primeiras imagens já lançam o espectador no coração de um mundo conflagrado. Simulam a captação, pelo celular, de um assalto em que o ladrão, cercado pela polícia, aponta a arma para a cabeça de uma mulher. Bang. Corta para a sala de um apartamento de elite à beira-mar, em que Tereza (Malu Galli), em estado quase catatônico, se prepara para passar uns dias com o marido (Tavinho Teixeira) na fazenda da família, na zona da mata de Pernambuco.

É nessa fazenda em decadência, prestes a ser vendida e transformada num hotel, que se passa todo o restante da ação. E que ação! Não cabe antecipar aqui as surpresas e reviravoltas que manterão teso até o último minuto o fio do suspense. Basta dizer que vêm à tona no processo as contradições sociais mais profundas produzidas pela nossa torta formação histórica.

O arcaico no moderno

A força do melhor cinema pernambucano das últimas décadas (Kleber Mendonça, Claudio Assis, Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Gabriel Mascaro, Marcelo Gomes, etc.) está em mostrar a sobrevivência do arcaico no seio do moderno, isto é, a persistência de estruturas oligárquicas de dominação num mundo fervilhante de novidades tecnológicas e cultura globalizada.

Propriedade pertence a essa linhagem. Com a lógica implacável de um teorema, aliada à paixão da revolta, investiga como se dá uma luta de classes multissecular em meio a celulares, câmeras de vigilância, internet, controles remotos e carros blindados.

Fiel a seu título, o filme amarra todos os conflitos em torno da ideia de propriedade. O apartamento, a fazenda, o anel, a espingarda, o automóvel – tudo tem dono. A posse garante o poder, o poder garante a posse. Mas a propriedade é também uma prisão, como sugere o take em que o portão automático do prédio do casal protagonista se fecha, formando uma grade em que aparece o letreiro com o título: PROPRIEDADE. A aturdida Tereza aprenderá essa verdade pelo caminho mais difícil.

Cinema não se constrói com palavras (ou não só com elas), mas sobretudo com imagens, e Propriedade conta com algumas poderosas, a mais memorável delas a de um automóvel equipado com tecnologia avançada sendo arrastado por um rústico carro de bois. Difícil imaginar expressão audiovisual mais eloquente do embate arcaico/moderno aludido acima.

Dentro e fora

A cisão entre dois mundos sociais inconciliáveis se expressa numa cena recorrente: do lado de fora do carrão high tech os empregados da fazenda se esforçam para enxergar através do insulfilm. Encerrada do lado de dentro, a patroa os vê, mas não consegue entender o que dizem.

Tão importantes quanto essa comunicação impossível são as dissensões no próprio grupo dos trabalhadores, com suas perspectivas e propostas divergentes. Uns querem botar fogo em tudo, outros pretendem se apossar da fazenda e geri-la coletivamente, outros ainda pensam num acordo com os patrões e há os que só desejam cair fora dali. A tragédia, como costuma acontecer, é que todos têm razão, ou pelo menos suas próprias razões.

Propriedade é o segundo longa-metragem de Daniel Bandeira, realizado nada menos que quinze anos depois do primeiro, o ótimo Amigos de risco, de ambientação estritamente urbana. Aqui, num cenário inteiramente distinto, ele volta a contar com o excelente diretor de fotografia Pedro Sotero, que aliás estreou em Amigos de risco, antes de se firmar como um dos melhores profissionais do ramo.

O numeroso elenco é vigoroso e afiado, com destaque para Zuleika Ferreira (no papel de líder implacável dos empregados revoltosos) e o sempre ótimo Edilson Silva, além da protagonista Malu Galli, numa atuação difícil e cheia de nuances.

É possível encontrar pontos em comum entre Propriedade e outro filme pernambucano marcante, Bacurau, de Kleber Mendonça Filho. Em ambos, uma comunidade oprimida se rebela contra os opressores. Mas, se Bacurau trafega entre o real e o fantástico, Propriedade mantém-se fincado no realismo. Se Bacurau, no fim das contas, resolve suas tensões no humor e na catarse, Propriedade termina no sufoco (literal) e na incerteza. O único prazer que concede ao espectador é o de ter visto um grande filme.