Queer, de Luca Guadagnino, é um filme estranho, a começar pelo título, vocábulo que cobre um amplo espectro semântico, além de nomear o romance do escritor beat William S. Burroughs que o inspirou.
A palavra queer, traduzível por “esquisito”, “fantástico”, “excêntrico” ou “ridículo”, servia em outros tempos como termo pejorativo para homossexual, como o nosso “bicha” ou “viado”. Depois foi incorporado pela comunidade LGBT com um sinal positivo, a ponto de hoje termos festivais, mostras e publicações com o rótulo queer.
Sexo e drogas
Todo esse preâmbulo para dizer que o filme de Guadagnino, assim como o livro de Burroughs, conjuga as duas dimensões principais da palavra: o comportamento sexual desviante em relação à heteronormatividade e o pendor pelo estranho, pelo fantástico, representado na busca por estados alterados de percepção.
William Lee (Daniel Craig), o protagonista, alter ego de Burroughs, é um escritor norte-americano refugiado no México, onde persegue suas aventuras homoeróticas e experiências com drogas pesadas.
Ambientado nos anos 1950 (Queer foi publicado tardiamente em 1985 como uma espécie de continuação de Junky, livro de 1953), o filme tem uma reconstituição bastante realista de época e local. Em sua primeira parte, vemos a peregrinação de Lee de bar em bar, de beco em beco, à procura de possíveis parceiros sexuais, de preferência mais jovens, e em segundo plano o uso de drogas e álcool. O ambiente e a errância do personagem lembram, com as devidas diferenças, a trajetória trôpega do protagonista alcóolatra de À sombra do vulcão (1984), filme de John Huston baseado no romance de Malcolm Lowry.
Com um desses parceiros eventuais, o jovem Eugene Allerton (Drew Starkey), aparentemente um agente do governo norte-americano, Lee desenvolve uma relação mais profunda, a ponto de convencer o rapaz a viajar com ele para os confins da Amazônia em busca de uma droga alucinógena, o yagé (ou ayahuasca).
É nessa segunda parte do filme, nas selvas do Equador e da Colômbia, que o filme funde, de certo modo, os dois sentidos da palavra queer, com os dois amantes chegando a transcender seu corpo físico e vivenciar outros modos de percepção da realidade circundante.
Uma sequência particularmente inspirada é aquela que mostra os corpos de Lee e Allerton literalmente se fundindo, com os ossos, nervos e músculos de um invadindo a anatomia do outro.
Almoço nu
À parte isso – e outros lances fugazes, como as carícias imaginárias de Lee no parceiro no início da amizade entre os dois –, trata-se de um filme bastante linear e convencional do ponto de vista da linguagem narrativa, especialmente se o cotejarmos (sem hierarquia ou juízo de valor) com outra obra baseada em Burroughs, Naked lunch (1991), de David Cronenberg, que no Brasil recebeu o infeliz título Mistérios e paixões.
Ali, sim, estamos no terreno do estranho e do fantástico, transmutados na própria forma cinematográfica, como se o cineasta nos colocasse dentro do mundo alucinatório do personagem (o mesmo William Lee).
Cenografia, fotografia (que puxa para o verde e um marrom terroso), personagens bizarros, objetos que ganham vida e voz, tudo em Naked lunch configura um mundo próprio, à parte do universo cotidiano. Tema e forma ligados de modo inextricável. Para quem tiver interesse, o filme está disponível na plataforma Belas Artes à la Carte.
Em Queer, ao contrário, vemos tudo “de fora”, ainda que de muito perto do protagonista. Sua ousadia se resume quase por completo aos fatos narrados – por exemplo, a uma cena de sexo oral arrematada por um beijo na boca pós-ejaculação – e ao fato de ter como ator principal o ótimo Daniel Craig, que ganhou fama mundial como James Bond, o suprassumo do macho alfa.
Pensando bem, Queer não é assim tão estranho. Mas tem sua coragem e sua integridade.