Um retrato entrega vida e até uma certa eternidade ao objeto, mas também pode revelar fissuras, pontos fracos, e matar a entidade em cena. Quando Shirley Clarke, numa longa noite em dezembro de 1966, levou ao seu apartamento, no mítico Chelsea Hotel, o essencial de uma equipe de quatro pessoas, uma câmera Éclair NPR 16 mm, um Nagra e equipamento de luz para filmar Retrato de Jason, filme da Sessão Cinética de agosto no IMS, o propósito era confuso. Havia uma motivação pessoal e uma ânsia artística em experimentar e esgarçar os limites possíveis do documentário performático. Cineasta e seu personagem disputam o poder na cena. Uma obra sobre a capacidade de reinvenção infinita e a potência do que diz respeito à representação e ao representado, cujo efeito imediato do filme projetado na tela é a performance em si mesma.
A intenção da artista Shirley Clarke em arrebentar os procedimentos do gênero estava longe de ser absurda. Sempre esteve muito próxima à geração do underground norte-americano, junto aos pioneiros Maya Deren e Kenneth Anger, assim como Jonas Mekas e Andy Warhol, ou mesmo diretores que experimentavam dentro de modelos mais narrativos, como Monte Hellman e John Cassavetes. Numa “promiscuidade” bem distinta dos vanguardistas europeus dos anos 1920, ali mais detidos na ideia duma arte cinematográfica essencialmente de movimento e ritmo apartada do teatro e da narrativa literária, artistas como Shirley Clarke trabalhavam certas convenções para reconfigurá-las numa nova estética. Em suma, a contracultura: corromper tradições para responder, com novas formas, a um estado de coisas do mundo. O retrato de Jason seria, então, um experimento de documentário que deixaria o processo à mostra. Algo, aliás, que Clarke fizera nos dois longas anteriores, obras de ficção hibridizada com teatro, artes plásticas, cinema direto ritmado por jazz, mise en scène sofisticada em dança com estética de filme underground: The Connection (1961) e The Cool World (1964), do consumo catártico de heroína à violência como meio de sobrevivência, duas obras fortíssimas sobre a condição dos afro-americanos. O foco dos filmes anteriores de Clarke era investigar, com profundidade e sem demagogia, a vida às margens do sistema, em especial da experiência negra americana.
Shirley Clarke já conhecia Jason Holliday, que era amigo do pai de Carl Lee, na ocasião namorado da cineasta e objeto de desejo de Jason. O convite seria para ele contar suas histórias, uma continuação dos outros dois filmes, pois ele era negro e homossexual nos EUA dos anos 1960, onde a discussão racial e de gênero incandescia. Nascido Aaron Payne numa Nova Jersey não afeita à ousadia, e tendo o novo nome dado pela cidade libertária de São Francisco, Jason era pretenso ator profissional e permanente performer que fez de tudo para sobreviver: de serviços em casas de senhoras ricas a sexo por diversão “do Maine ao México”. Belo, excêntrico, genioso e estimulante, Jason, num rebuscado overacting, que na autenticidade confunde farsa e verdade, fala sobre passagens prosaicas de sua vida, faz referência a divas como Mae West, a personagens como Scarlett O’Hara e Carmen Jones, e assume a forte postura política do negro altivo que responde à violência racista com um dandismo arrasador.
Jason é a própria atuação, uma verdade que estaria na representação (Jason Holliday) e não na entidade Aaron Payne. Daí Clarke ter o objetivo inicial de desarmar a atuação em que ele tinha total controle, fazê-lo ir a si próprio, e assim colocá-lo à prova. Num método aparentado ao de Cassavetes (que amou o filme, assim como Jonas Mekas e Ingmar Bergman), Jason tem à mão uma garrafa de single malt, cigarros e maconha, consumidos durante as 12 horas de filmagem por um corpo que vai perdendo parte do controle rijo da atuação para, inesperada e espetacularmente, se recriar, bêbado, numa chave mais maneirista e consoante à tensão que vai tomando o filme. Mas, sendo Shirley Clarke, o sentido lhe é estético. Na lida com o material na ilha de edição, a disputa inicial transformou-se em amor, e a tal verdade que ela queria extrair de Jason realiza-se na própria cena, como fato estético, pois o que é da biografia do ator e o que é de seu personagem são indistintos no estar em cena. A performance é uma realidade indiscutível.
Mas Jason luta com o sorriso, uma risada que é mais presença formal do que enunciação. Um riso que é a maior criação do artista Jason Holliday, porque puxa para si todo um jogo que se estabelece entre o biografado, a diretora e sua equipe. Uma espécie de coringa que leva a cena a um estado de graça desconcertante. Dos fortes lábios de Jason, seus dentes e o som que deles sai, ele esgrima com a diretora. Clarke adota uma tradição, a do método de teste de elenco ao estilo da escola moderna de atuação, para subvertê-la e desnaturalizá-la de seu funcionalismo. Mesmo atrás da câmera, ela “aparece” em cena com sua voz no extracampo, cutucando seu ator, mas sujando o plano com rebarbas, imagens ausentes, aviso de número de rolo, o que, pela convenção, seriam os bastidores das filmagens que deveriam estar fora do corte final dum filme sobre uma galante e excêntrica personalidade. Clarke expõe as vísceras por trás do belo corpo duma obra de arte.
Já no primeiro plano, quando a diretora transgride a regra e elege o fora de foco como a imagem por excelência, a figura borrada de Jason, a primeira de muitas outras no filme, expande a presença do ator para além da cena, além do filme, misturando-o junto às matérias fílmicas, da banda sonora à química do acetato em 16 mm, fazendo dele um fato estético acima do figurativismo, uma obra de arte que carrega sua presença. Clarke traz para o cinema um equivalente da técnica pictórica do borrão, do retrato em que podemos observar a mão de quem pinta, e o efeito principal é justamente esta tensão entre a mediação visível e a figura. O retrato de Jason, é acima de tudo, um elogio radical a essencial impureza e fugacidade do gesto de retratar.
- Paulo Santos Lima é crítico de cinema e escreve na revista Cinética