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Retribuição: a “gostosura” de fazer cinema

11 de setembro de 2024

A sessão Retribuição + Almeri e Ari - Ciclo do Recife e da vida está em cartaz no cinema do IMS Poços.

 

“Foi uma gostosura Retribuição, onde havia de tudo: trens, lanchas, policiais, perseguições, suplícios e também amor”[1]. Assim Jota Soares relembrou o primeiro filme de ficção lançado pela produtora Autora-Film, criada no Recife na primeira metade da década. Jota se tornaria o principal memorialista das atividades cinematográficas desse período em que, entre 1924 e 1930, foram realizados em Pernambuco mais de 40 títulos, entre curtas e longas-metragens, de ficção e não ficção.

Filmes de não ficção, os chamados “naturais”, já vinham sendo produzidos no Recife desde os anos 1910, por cinegrafistas locais ou de outros estados. Mas a criação da Aurora-Film e, sobretudo, a estreia de Retribuição em março de 1925, atraindo grande interesse dos espectadores, que lotaram as sessões no cinema Royal, desencadearam tamanho entusiasmo que, a partir daí, surgiram outras produtoras e mais filmes foram realizados e exibidos nas salas da cidade, transformando o Recife em um local de significativa atividade cinematográfica. Quase a totalidade dos filmes e fragmentos hoje preservados dessa produção foram exibidos na mostra Anos 1920: Recife em tempo de cinema, organizada no IMS Paulista em dezembro de 2023[2], que procurou também estabelecer diálogos e contrapontos com curtas-metragens pernambucanos realizados nas décadas seguintes.

Retribuição levou meses e meses sendo realizado. O diretor Gentil Roiz e o cinegrafista Edson Chagas, sócios da Aurora-Film, filmavam nos fins de semana, quando elenco e equipe tinham folga de seus respectivos empregos e ocupações. Usavam uma câmera de segunda mão, comprada a prestações e bastante precária. Completavam o núcleo inicial da Aurora o ator e diretor Ary Severo e sua noiva, a atriz Almery Steves, que logo iriam se casar. Décadas depois, o casal seria homenageado pelo cineasta Fernando Spencer no curta Almeri & Ari: ciclo do Recife e da vida (1979), o complemento escolhido para a sessão de Retribuição.

O sergipano Jota Soares só viria a se juntar ao grupo da Aurora depois da filmagem de Retribuição, passando a trabalhar como ator, diretor e em outras funções. Isso não o impediu, contudo, de traduzir com precisão o prazer do grupo em realizar a “gostosura” que foi Retribuição. Os jovens da Aurora, vindos quase todos das classes média e baixa, eram antes de tudo empolgados fãs de cinema – mais especificamente do cinema americano, comercial, de gênero. Retribuição representou a oportunidade de fazer, eles próprios, o que costumavam ver e admirar nas telas. Cenas com trens, lanchas, policiais, perseguições, suplícios e amor não faltavam nos gêneros mais populares da época, como os filmes de aventura, faroestes e seriados – referências que norteiam a primeira produção da Aurora.

Para o grupo da Aurora, o que importava não era tanto a originalidade. Retribuição permitiu àqueles jovens o desejado exercício dos clichês, a experiência prática com os recursos visuais, estéticos e narrativos que os atraíam nos filmes americanos. É assim que, ao longo de Retribuição, o que se vê em andamento é um processo de aprendizado da linguagem do cinema.

Cena de Almeri & Ari: Ciclo do Recife e da vida, de Fernando Spencer

A preferência pelos seriados e filmes de aventura, já explícita no enredo, conduz a escolha pela locação do primeiro embate entre o par romântico e os bandidos. O terreno acidentado das ruínas de Palmira, em Olinda, traz uma dose de risco e perigo físico às cenas de ação, ao mesmo tempo que oferece um cenário visualmente atrativo, mirando no exemplo das encostas traiçoeiras dos filmes de faroeste. Não faltam as brigas e trocas de socos entre mocinhos e malfeitores. Se a caracterização do bando e de seu esconderijo remete de imediato aos filmes hollywoodianos de gênero, os apelidos fazem questão de marcar o sabor da fala nordestina: Corisco[3], Bala N’Agulha, Timbira, Maciota.

Atentos às práticas do cinema americano, tão valorizadas pela campanha em defesa do cinema brasileiro que então começava a ser promovida pelos jornalistas Adhemar Gonzaga e Pedro Lima nas revistas cariocas Para Todos... e Selecta, os jovens da Aurora não descuidaram da política do estrelismo. Contaram para isso com a atriz Almery Steves e sua expressiva graciosidade diante da câmera. As revistas cariocas, incluindo Cinearte, que seria fundada em 1926, iriam trazer fotos suas nas colunas dedicadas a cinema brasileiro ou mesmo na capa, como aconteceu em novembro de 1926 em Selecta. Mas já na cena inicial de Retribuição, a da morte do pai, o filme reserva a Almery um tratamento que afirma seu status de estrela: um primeiro plano cuidadosamente iluminado e enquadrado a destaca em relação ao ambiente e demais personagens, aliando a dramaticidade da cena à beleza de seu rosto, que se volta para o alto, com a luz ressaltando suas feições, emolduradas pelo cabelo escuro.

Retribuição é testemunho do fascínio pelo cinema hollywoodiano e também da dificuldade em seguir seus parâmetros. O uso recorrente, quando não excessivo, das cartelas com diálogos explicita a insegurança quanto à própria capacidade de narrar uma história de forma menos dependente das palavras. E, mesmo assim, as tantas cartelas ainda não são suficientes para resolver as incongruências da trama. Em termos de solução narrativa, porém, chama a atenção o curioso recurso a dois flashbacks de uma mesma cena, com a variação entre pontos de vista (e montagens ligeiramente diferentes), sendo o primeiro contado pelo mocinho e o segundo, pelo chefe dos bandidos.

Depois de Retribuição, os filmes de ficção silenciosos realizados em Pernambuco iriam ora enfatizar o diálogo com cinema de gênero, ora buscar traços mais regionais. É uma dinâmica que se percebe em outras produções do mesmo período, no Brasil e na América Latina, como a mostra Anos 1920: Recife em tempo de cinema procurou ressaltar, inserindo na programação o brasileiro Tesouro perdido (Humberto Mauro, 1927), o mexicano O trem fantasma (El tren fantasma, Gabriel García Moreno, 1927) e o colombiano Bajo el cielo antioqueño (Arturo Acevedo, 1925) – todos realizados fora das capitais de seus países, configurando as chamadas “produções regionais”.

Para a mostra, a Cinemateca Brasileira realizou uma digitalização em 4k de Retribuição, a partir de uma cópia em nitrato, provavelmente confeccionada na época do lançamento. Graças a essa nova cópia digital, é possível apreciar um traço estético do filme que durante décadas ficou omitido devido aos materiais em preto e branco, e em geral de baixa qualidade, aos quais se tinha acesso: o uso das cores. Por meio das técnicas de tingimento e viragem, cores haviam sido aplicadas na cópia em nitrato, e agora foram reproduzidas no processo de digitalização. Vermelhos, verdes e sépias, entre outros tons, surgem na tela para imprimir maior teor dramático e proporcionar bonitos efeitos visuais.

A nova cópia digitalizada de Retribuição tem ganhado mais outra camada de significação e fruição – não só estética mas também narrativa – nas sessões promovidas com trilha sonora ao vivo, tocada pelo trio de músicos que tem à frente o guitarrista Lúcio Maia. Retomando a prática do acompanhamento musical do período do cinema silencioso, eles trazem uma releitura contemporânea para essa produção quase centenária.

 


 

[1] Cunha Filho, Paulo C. (ed.). Relembrando o cinema pernambucano – Dos arquivos de Jota Soares. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 2006, p. 61.

[2] Uma realização do Cinema do IMS, a mostra teve curadoria de Luciana Corrêa de Araújo, autora deste texto. [N.E.]

[3] É improvável que seja referência ao cangaceiro, que na época de realização do filme ainda estava se iniciando no cangaço.