Poucos elementos concentram em si tantos significados (reais e simbólicos) quanto o ouro, e em Rheingold – O roubo do sucesso, o diretor Fatih Akin parece determinado a abordar pelo menos os principais deles.
O filme, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, reconstitui a acidentada e quase inverossímil trajetória de Giwar Hijabi (Emilio Sakraya), mais conhecido como Xatar, rapper, empresário, produtor musical e ex-presidiário nascido no Irã e radicado na Alemanha. O livro autobiográfico de Xatar, Tudo ou nada, serviu de base para o roteiro.
Imigrantes marginalizados
Habituado a retratar imigrantes médio-orientais vivendo nas frestas da Europa rica, Akin – ele próprio um alemão filho de imigrantes turcos – está “em casa” ao tratar do assunto, e o argumento de Rheingold lhe permite transitar com desenvoltura por vários estratos sociais e contextos culturais em uma porção de países.
A velocidade narrativa é notável. Os primeiros quinze minutos de filme atravessam três décadas e cinco países: Síria, Irã, Iraque, França e Alemanha. Filho de um maestro e compositor curdo, Xatar sofre desde o nascimento os trancos e vicissitudes impostos a essa minoria perseguida no Irã dos aiatolás e mais ou menos em toda parte.
Mais do que os deslocamentos geográficos, o que desconcerta o espectador é a vertiginosa variedade de ambientes sociais e culturais. Das mais sofisticadas salas de concerto às prisões mais sórdidas, passando por mansões, bordéis de quinta categoria, colégios de elite e gangues de periferia, há de tudo um pouco, em meio a uma algaravia de línguas e sotaques.
Retorno à música
Permeável a todos esses contextos e estímulos, Xatar se afasta inicialmente do caminho da música para o qual parecia estar destinado e mergulha em várias modalidades de crime: brigas de rua, tráfico de drogas, chantagem e, finalmente, um grande roubo de ouro. Dessa descida aos infernos, ele emerge com uma síntese improvável – o retorno à música, mas uma música que de algum modo condensa toda essa vivência.
E aqui voltamos ao ouro, presente desde os primeiros diálogos, numa prisão na Síria. Mas ao ouro concreto – riqueza material, que inflama a cobiça e induz ao crime – contrapõe-se o ouro simbólico do tempo, o Rheingold da ópera de Wagner (e da mitologia germânica), o fabuloso ouro do Reno, “que nos torna imortais”, conforme o pai maestro explica ao pequeno Xatar na grande sala de concertos de Bonn.
É uma das cenas mais belas do filme. Da galeria deserta, o garoto e seu pai presenciam um ensaio da orquestra, com os primeiros acordes da ópera wagneriana, aqueles sons indistintos que sugerem o nascimento de um mundo. Vale por uma epifania.
Se o cinema de Akin tende às vezes (como no repulsivo O bar da luva dourada) a um realismo sem condescendência nem transcendência, aqui ele parece ter encontrado um equilíbrio entre o brutalismo habitual e algum tipo de elevação espiritual, de aspiração ao sublime.
Não deixa de ser inquietante – e irônico – esse encontro entre a música rude de Xatar, voz desaforada dos marginalizados do banquete europeu, e a música de Wagner, que exalta as origens míticas e a pretensa superioridade do povo germânico. A arte tem dessas manhas.