De tempos em tempos chega de algum lugar um filme que nos lembra que o cinema ainda pode ser a maior diversão popular, honrando sua origem como atração de feira. É o caso agora do indiano RRR: Revolta, rebelião, revolução, de S.S. Rajamouli, disponível na Netflix. O ideal seria vê-lo na tela grande, mas nada é perfeito.
Para embarcar nessa viagem alucinante de três horas de duração é preciso deixar de lado o superego crítico que desenvolvemos ao longo de mais de um século de cinema narrativo ocidental, com seus códigos, convenções e interdições. Confesso que, na primeira tentativa, desisti depois de alguns minutos de absurdos, inverossimilhanças, esquematismo histórico, exotismo clichê, maniqueísmo rasgado e estética kitsch. Outros colegas críticos relataram a mesma resistência inicial.
Heróis contra o império
Vencido esse obstáculo, o espectador pode se entregar sem culpa a uma experiência única, semelhante à da criança que entra pela primeira vez num parque de diversões, vivenciando uma surpresa depois da outra.
Mas vamos ao filme. Ambientado na Índia dominada ainda pelos britânicos, no início dos anos 1920, RRR entrelaça ficcionalmente as trajetórias de dois revolucionários que lutaram pela independência do país, Alluri Sitarama Raju (Ram Charan Teja) e Komaram Bheem (N. T. Rama Rao Jr.). Os dois personagens existiram de fato, mas segundo consta nunca se encontraram. A narrativa do filme é pura fantasia, com um pano de fundo histórico.
Logo no início, duas sequências alternadas anunciam as linhas narrativas que se encontrarão mais adiante. Numa delas, Malli (Twinkle Sharma), uma menina que canta com voz celestial, é sequestrada de sua aldeia para servir à esposa cruel (Alison Doody) do governador britânico Scott Buxton (Ray Stevenson). Na outra, nos arredores de Delhi, Raju, então atuando na força policial do Império Britânico, enfrenta sozinho uma multidão em fúria que sitiava uma fortaleza dos colonizadores.
Bheem só aparecerá um pouco mais tarde. Ele se considera irmão da pequena Malli e se impõe como missão resgatar a menina das mãos dos desalmados britânicos. Raju, por sua vez, quer subir na hierarquia do exército de ocupação para ter acesso a seu poderoso arsenal. Esses são, em resumo, os destinos que os dois heróis traçaram para si.
Todos os gêneros
Mais importante que a história narrada, entretanto, é o modo como ela põe em ação todo tipo de recurso do cinema de espetáculo. RRR é tudo ao mesmo tempo: epopeia, musical, suspense, melodrama, comédia, fantasia mística e filme de artes marciais. Seus realizadores não hesitam em transgredir todas as normas do comedimento, do equilíbrio, do “bom gosto” e das fronteiras entre os gêneros cinematográficos. Uma violenta sequência de ação se converte de repente num vibrante número musical ou num meloso flashback romântico. As três horas passam num piscar de olhos.
O mais interessante é que, a despeito de seu tema grandioso, de seus heróis “maiores que a vida”, de sua pulsação épica, o filme parece não se levar demasiado a sério. Está sempre pronto a se revelar como espetáculo ligeiro e autoirônico. O império do prazer triunfa sobre o princípio de realidade. Nada mais indicado para este nosso fim de ano, que marca também o término de um período de trevas.
Uma dica prosaica, mas importante: ao colocar o filme para rodar na Netflix, optar pelo híndi como língua original. Só assim fazem sentido as falas dos intérpretes na história, caso contrário eles traduzem absurdamente do inglês para o inglês – e não estamos num filme do Monty Python.