O 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, encerrado no último fim de semana, foi uma consagração da diversidade racial, cultural e de gênero nas telas. E também no palco: nunca o venerável Cine Brasília teve a presença de tantas pessoas negras, indígenas e LGBTs apresentando seus filmes e recebendo seus prêmios. Uma autêntica festa inclusiva e libertária.
O grande vencedor do evento foi o longa-metragem pernambucano Salomé, de André Antônio, que atualiza criativamente o mito da princesa bíblica para o contexto da cena queer recifense. Uma história de amor atemporal que mistura romance, ficção científica e policial noir. Premiação completa no site do festival.
O triunfo de Salomé foi tão avassalador (melhor filme para o público, a crítica e o júri oficial, além de cinco outros prêmios) que ofuscou os dois outros grandes filmes da competição, Suçuarana, de Clarissa Campolina e Sérgio Borges, e A fúria, de Ruy Guerra e Luciana Mazzotti. É deste último que vamos tratar aqui.
A hora da vingança
A fúria é o terceiro segmento de uma trilogia não planejada que começou com Os fuzis (1964) e teve continuidade com A queda (1978). A ligar os três filmes está o personagem Mário (Nelson Xavier nos dois primeiros, Ricardo Blat no terceiro), que foi um soldado no sertão baiano em Os fuzis e um operário da construção civil no Rio em A queda. Em A fúria ele volta do além-túmulo para se vingar dos ex-companheiros que provocaram sua prisão, tortura e morte. Nesta entrevista, Ruy Guerra fala brevemente sobre a trajetória de seu personagem:
Se os dois primeiros filmes da trilogia tinham uma abordagem essencialmente realista, A fúria é uma alegoria política delirante, quase à maneira de Terra em transe e A idade da terra (ambos de Glauber Rocha). Concentra-se no jogo político que envolve empresários vorazes, políticos corruptos, pastores gananciosos e militares saudosos da ditadura.
A semelhança com a política brasileira recente não será mera coincidência. O filme chegou a ser investigado pela PF durante o governo Bolsonaro depois que circularam fotos do set mostrando um sósia ensanguentado do então presidente.
O que impressiona é antes de tudo a vitalidade juvenil exibida por Ruy Guerra no esplendor de seus 93 anos. A parceria com Luciana Mazzotti, ao que parece, levou-o a renovar seu ímpeto e afiar seus instrumentos. É um filme de uma ousadia ao mesmo tempo temática e formal, que configura um universo à parte, singular, entre o real e a fantasia, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, mediante uma estética expressionista, antinaturalista, na iluminação, na cenografia, na dramaturgia e na mise-en-scène.
Não é uma obra passadista, muito pelo contrário. Todos os temas mais candentes de nossa época – do golpismo político à devastação das florestas, da manipulação religiosa à afirmação da liberdade sexual e de gênero – estão encenados ali.
Atores veteranos
De quebra, o filme traz uma plêiade de atores veteranos que carregam consigo boa parte da história do cinema brasileiro (Lima Duarte, Daniel Filho, Paulo César Pereio, Antônio Pedro, Antônio Pitanga), ao lado de expoentes da geração atual, como Grace Passô (em personagem inspirada em Marielle Franco), Simone Spoladore e Higor Campagnaro. Fragmentos de Os fuzis e de A queda inserem-se aqui e ali, fazendo as vezes de flashbacks.
Embora tenha empolgado o público brasiliense, sendo aplaudido entusiasticamente em cena aberta e ao final, A fúria caiu como um corpo estranho no festival, desconcertando críticos e jurados, que acabaram por lhe conferir o prêmio especial do júri, uma espécie de honraria de consolação. A meu ver, merecia muito mais. Cabe esperar que A fúria, Suçuarana e Salomé entrem logo em cartaz e cheguem ao maior número possível de espectadores.