Passou praticamente batido entre nós o centenário de nascimento de um dos maiores cineastas do mundo, o indiano Satyajit Ray (1921-92), celebrado em maio último. Nunca é tarde para descobrir ou conhecer melhor essa obra magnífica. Vários títulos de sua vasta filmografia estão disponíveis em streaming ou em DVD.
Satyajit Ray chamou a atenção mundial já em seu primeiro longa-metragem, A canção da estrada (1955), premiado e aclamado em Cannes. O filme daria início à chamada “trilogia de Apu”, que se completaria com O invencível (1956) e O mundo de Apu (1959). No primeiro, o pequeno Apu vive com sua família camponesa no interior da Índia. No segundo, vai a Calcutá para estudar. No terceiro, é um jovem aspirante a escritor.
A trilogia foi lançada numa caixa de três DVDs pelo selo Obras-Primas. A canção da estrada está disponível também no canal gratuito de streaming Dailymotion com legendas em espanhol e sob seu título original, Pather Panchali. Os três filmes podem ser encontrados de graça também no YouTube, com legendas em inglês.
O papel da mulher
Cinco dos filmes mais fortes da obra madura do diretor estão disponíveis no Mubi: em ordem cronológica, Charulata ou A esposa solitária (1964), O covarde (1965), O jogador de xadrez (1977), A casa e o mundo (1984) e O estrangeiro (1991). Todos são excepcionais.
O tema da paixão extraconjugal ou amor proibido aparece em A esposa solitária, O covarde e A casa e o mundo, mas cada vez com matizes diferentes e imbricado a outros assuntos ligados à realidade social, cultural e política indiana. No cinema de Ray, a mulher catalisa as tensões e contradições da Índia, acomodando-se mal (ou não se acomodando de modo algum) ao papel subalterno e silencioso que geralmente lhe é reservado.
A casa e o mundo, aliás, é um título que conviria a grande parte da produção de Ray: em seu cinema há sempre um entrelaçamento entre o drama doméstico e um contexto histórico mais amplo, seja nos filmes de época ou nos de ambientação contemporânea. Por mais que a casa possa parecer um cenário plácido e isolado, o alvoroço do mundo entra por todos os lados.
Especificamente em A casa e o mundo, ambientado no início do século 20, o centro da ação é a residência de um aristocrata de cultura ocidentalizada (Victor Banerjee) e sua esposa Bimala (Swatilekha Sengupta), que aprende inglês, canto e piano com uma preceptora britânica, mas, seguindo o costume da época, nunca sai de sua reclusão no palácio e jamais avista outro homem que não seja seu marido ou seus serviçais. Uma exceção será o agitador nacionalista Sandip (Soumitra Chatterjee, que estreou em O mundo de Apu e se tornou o ator mais frequente de Ray), amigo de juventude de seu marido.
Sandip, que prega um boicote radical a todos os produtos estrangeiros, a ponto de queimá-los em fogueiras rituais, traz consigo toda a turbulência que estremece a Índia na época, em especial os conflitos entre hindus e muçulmanos.
Mas Ray recusa os simplismos, tanto no terreno do amor como no da política. Se, no princípio, Sandip aparece como o herói romântico que atiça o desejo de aventura de uma esposa insatisfeita com seu marido conservador, o desenrolar da história vai desmentir esse esquema clássico.
O herói, afinal, pode não ser tão heroico, o marido pode não ser tão conservador. Tudo tem várias nuances nesse belo filme baseado em romance do prêmio Nobel Rabindranath Tagore, que ganha uma atualidade pungente nestes tempos de exacerbação do ódio e de intolerância religiosa.
De especial interesse também é O jogador de xadrez, que adota um ângulo original para abordar a anexação do último reino autônomo da Índia (Awadh ou Oudh) pelo Império Britânico em 1856. É o único filme do diretor falado em hindi. Os outros geralmente são em bengali e inglês.
Em paralelo aos acontecimentos na corte de Oudh – a pressão da Companhia das Índias Orientais contra o inoperante rei Wazed Ali Shah, que só pensa em poesia, música e dança – acompanhamos as estripulias de dois nobres tão viciados no jogo de xadrez que negligenciam suas mulheres e ignoraram o abalo que está prestes a sacudir o país. É uma sátira política de sabor amargo.
Testamento estético
Mas talvez a obra-prima de Satyajit Ray seja seu último filme, O estrangeiro, que vale como seu testamento estético e filosófico. Em Calcutá, Anila Bose (Mamata Shankar), esposa de um executivo bem-sucedido, recebe a carta de um homem que se apresenta como Manomohan Mitra, o tio que ela conheceu apenas na infância e que depois sumiu no mundo.
Na carta, Mnomohan (Utpal Dutt) se convida para hospedar-se por um tempo na casa da suposta sobrinha, antes de partir de novo em viagem. Sudhindra (Dipankar Dey), o marido de Anila, desconfia que se trate de um embusteiro em busca do dinheiro da família, mas acaba aceitando a visita do velho.
A chegada do homem perturba a estabilidade burguesa da família. Há sempre um clima de dúvida no ar, mas enquanto o marido de Anila busca mais informações sobre o visitante, seu filho pequeno logo cria um vínculo afetivo com o velho, que conta histórias sobre suas viagens antropológicas pelo mundo, incluindo temporadas entre indígenas das Américas, aborígenes da Austrália e tribos remotas da própria Índia.
Também ali, até a reveladora e epifânica cena final, reinam a ambiguidade e a incerteza. Nesse jogo de sombras, vêm à tona as reflexões maduras do próprio Ray sobre a relatividade de todas as crenças, a fragilidade das certezas, a beleza de todas as civilizações e, no fim das contas, a fugacidade da vida. Ele próprio morreria menos de um ano depois da estreia do filme.
Faltou dizer que esse humanismo radical de Ray se expressa numa poética da clareza e da discrição, que nunca sobrepõe o virtuosismo técnico ou o efeito estético aos dramas humanos que coloca em cena. Ancorada numa sensibilidade plástica ímpar, sua narrativa é clássica, mas não acadêmica: busca sempre o enquadramento, o tom e o ritmo mais adequados para fazer pulsar as emoções de seus personagens e revelar o sentido das inter-relações entre eles. Um cinema límpido e profundo, em que se movem criaturas comuns que, no fim das contas, parecem se perguntar, como o poeta: existirmos, a que será que se destina?