Notícias de casa, de Chantal Akerman, e Pesadelo perfumado, de Kidlat Tahimik, são os filmes de novembro da sessão Mutual Films.
Kidlat Tahimik e Chantal Akerman
Dois filmes foram realizados em 1976, em 16 mm, por cineastas-protagonistas que compartilharam um impulso de colocar suas histórias de vida diante da câmera. Em ambos os filmes, o deslocamento foi fundamental para a construção da identidade. O diretor filipino Kidlat Tahimik (1942) colaborou com o cinegrafista alemão Hartmut Lerch entre as Filipinas e a Europa na realização de Pesadelo perfumado (1977), o primeiro de uma série de filmes-diários com toques fantásticos. Já a diretora belga Chantal Akerman (1950-2015) fez o documentário Notícias de casa (1977), seu quarto filme com a cinegrafista francesa Babette Mangolte, a partir de um processo melancólico de volta a Nova York, cidade importante na formação das duas.
Akerman trabalhou seus traumas por meio do cinema. Suas inúmeras obras de documentário e ficção, instalação, vídeo e memórias literárias são projeções da vida de uma artista que batalhou para encontrar seu lugar no mundo, de forma frequentemente tragicômica, inclusive em sua obsessão com um outro ausente. O isolamento nessas obras é uma imposição do outro, porém é o único ponto de partida possível para a construção do Eu. A vida se consolida na constante fuga de estruturas predeterminadas – da narrativa, da família, de uma identidade rígida.
Em vários de seus filmes – frequentemente protagonizados pela cineasta, diante da câmera ou na narração –, Akerman constrói uma imagem de si a partir da tentativa de exorcizar a figura materna. A mãe é a imigrante polonesa judia e sobrevivente do Holocausto Natalia “Nelly” Akerman, uma presença importante até sua última obra, Não é um filme caseiro (No Home Movie, 2015). Em Notícias de casa, sons e imagens de uma cidade em fluxo constante são envolvidas pela voz em off de Chantal, que lê, de forma sóbria e rápida, cartas que recebeu quando morava em Nova York de sua mãe carente, alguns anos antes das filmagens.
Enquanto ouvimos descrições de cenas cotidianas e dos problemas diários de uma família de classe média, inclusive lamentações pela ausência da filha, vemos carros em ruas estreitas e pessoas solitárias se deslocando em lugares silenciosos, entrando e saindo do metrô e desaparecendo nos vagões. Ao delinear a figura de Chantal, as palavras maternas são como um feitiço sobre a cidade, fazendo com que a observemos em sua ausência. A filha é fortalecida a partir da fala da mãe, que existe em um outro momento, já distante daquele das imagens que observamos. Assim, uma sensação multitemporal emerge ao longo do filme, com a personagem não vista da diretora existindo entre dois lugares, olhando sempre simultaneamente para frente e para trás.
Akerman comentou em entrevistas que, devido às experiências traumáticas de seus pais durante a Segunda Guerra Mundial, foi negada à filha a possibilidade da dor. A melancolia de sua geração estava na perda do pleno direito de existir, após a extrema destruição a qual foi submetida a comunidade judaica. Para existir, ela precisou abrir mão de suas origens, e buscou em outras paisagens uma personificação, que encontrou num país onde se vende a cada esquina o mito da reinvenção. Em Notícias de casa, a existência parece ser possível apenas no estrangeiro, entretanto no estrangeiro está a fantasmagórica e anuladora diáspora.
Com Kidlat Tahimik é o contrário: a construção de si se consolida na realização do que é o outro – inclusive na fabulação do próprio nome do protagonista de seu longa de estreia, um par de palavras na língua tagalo que o então economista e homem de negócios Eric de Guia adotaria permanentemente. Este ato de reinvenção possui um sentido irônico no contexto de Pesadelo perfumado, uma história de aventura narrada pelo artista na qual a figura ingênua e feliz do jovem Kidlat, cujo pai foi a primeira “causalidade” e o estopim da Guerra Filipino-Americana, trabalha em uma aldeia como motorista de jeepney, um tipo de transporte público todo colorido feito de sobras de jeeps americanos. O grande desejo de Kidlat, explicado por ele para nós e para os residentes da aldeia, é se tornar astronauta e seguir os passos de Wernher von Braun, cientista alemão-americano que desenvolveu várias tecnologias espaciais nos Estados Unidos.
O governo dos Estados Unidos ocupou as Filipinas entre 1898 e 1946, e continuou a manter bases militares nas ilhas após sua saída oficial. O personagem de Kidlat acaba levando consigo o conceito de progresso anti-humano embutido no sonho americano numa viagem para a Europa na companhia de um militar e empresário norte-americano (interpretado por Lerch), onde descobre, pelo contato direto com a outra cultura, o feitiço trazido de fora. Algumas pessoas que Kidlat encontra na França e na Alemanha são velhos trabalhadores já desiludidos com o vazio que o mundo moderno oferece a eles, e que ficam encantados com suas histórias sobre uma vida mais artesanal em Balian. A cultura nativa é preservada, e a tradição, fortalecida na história do jovem que deixa sua vila em busca de uma vida melhor. Kidlat acaba aprendendo a combater o pesadelo do progresso com o sopro mágico que seu pai utilizou contra os americanos, e que ele próprio utiliza para soprar-se de volta para casa.
O projeto de Kidlat Tahimik, tanto em Pesadelo perfumado quanto em seus outros filmes, é a comunicação com o outro, e a mensagem transmitida de autovalorização é universal. Ainda que o personagem criado pelo cineasta e desenvolvido em filmes como Por que o amarelo é o meio do arco-íris? (Bakit dilaw ang gitna ng bahag-hari?, 1994) e Balikbayan #1: memórias do superdesenvolvimento (Balikbayan #1: Memories of Overdevelopment, 2015-2018) seja baseado em experiências pessoais envolvendo parentes e amigos, no extremo, a sua mensagem pode ser propagada se existir outro em seu lugar. Ele continuou sua jornada com foco na valorização da cultura nativa das Filipinas e nos laços familiares, como com sua esposa alemã, seus três filhos (inclusive o parto de um deles é sutilmente registrado em Pesadelo perfumado) e sua mãe – na vida real, a primeira mulher eleita para um cargo público nas Filipinas –, que serve como uma presença fundamental ao acompanhar em espírito seu filho em sua jornada ao mundo civilizado.
Assim como Chantal Akerman, Kidlat Tahimik fez de sua vida uma obra artística. Os dois estenderam o mundo de seus filmes para a vida real, continuando a incorporar e a viver os personagens ao longo do tempo. Os cineastas, cada um a sua maneira, se tornaram suas próprias criações. Os filmes serviram como veículos.
A sessão é dedicada ao poeta norte-americano John Giorno, falecido em outubro. Para celebrar sua obra e a última Sessão Mutual Films de 2019, traduzimos seu poema “Everyone Gets Lighter” (“Todo mundo fica mais leve”), de 2007:
Everyone Gets Lighter
Life is lots of presents,
and every single day you get
a big bunch of gifts
under a sparkling pine tree
hung with countless balls of colored lights;
piles of presents wrapped in fancy paper,
the red box with the green ribbon,
and the green box with the red ribbon,
and the blue one with silver,
and the white one with gold.
It's not
what happens,
it's how you
handle it.
You are in a water bubble human body,
on a private jet
in seemingly a god world,
a glass of champagne,
and a certain luminosity
and emptiness,
skin of air,
a flat sea of white clouds below,
and the vast dome of blue sky above,
and your mind is an iron nail in-between.
It's not
what happens,
it's how you
handle it.
Dead cat bounce,
catch
the falling knife,
after endless shadow boxing
in your sleep,
fighting in your dreams
and knocking yourself out,
you realize everything is empty,
and appears as miraculous display,
all are in nature
the play of emptiness and clarity.
Everyone
gets
lighter
everyone
gets lighter
everyone gets
lighter
everyone gets lighter,
everyone is light.
Todo mundo fica mais leve
A vida é um monte de presentes,
e todo santo dia você ganha
um monte de lembranças
debaixo de um pinheiro brilhante
enfeitado com inúmeras luzes coloridas;
pilhas de presentes embrulhados em papéis refinados,
a caixa vermelha com fita verde,
e a caixa verde com fita vermelha,
e a azul com prata,
e a branca com ouro.
Não é
o que acontece,
é como você
lida com isso.
Você está em uma bolha d’água de corpo humano,
num jatinho particular
em um aparente mundo divino,
uma taça de champanhe,
e uma certa luminosidade,
e o vazio,
pele de ar,
um mar calmo de nuvens brancas abaixo,
e o vasto domo azul do céu acima,
e sua mente é um prego de ferro no meio.
Não é
o que acontece,
é como você
lida com isso.
O gato morto pula,
pega
a faca caindo,
depois do interminável boxe de sombras
em seu sono,
lutando em seus sonhos
e se nocauteando,
você percebe que tudo é vazio
e aparece como uma vitrine miraculosa,
tudo está na natureza
o jogo do vazio e da claridade.
Todo mundo
fica
mais leve
todo mundo
fica mais leve
todo mundo fica
mais leve
todo mundo fica mais leve,
todo mundo é luz.