Segredos de um escândalo: o título adotado no Brasil (e também em Portugal, na Espanha e na América Latina) não poderia ser mais sensacionalista, mas o filme de Todd Haynes é, de certa forma, o oposto disso. May December, o título original, alude de forma oblíqua à diferença de idade entre os protagonistas do tal escândalo, “maio” representando a juventude e “dezembro” a idade madura.
O evento em questão é a rumorosa relação erótica entre uma mulher de 36 anos e um adolescente de 13. A inspiração evidente e assumida é a história real de Mary Kay Letourneau, que em 1996 foi flagrada fazendo sexo com seu aluno Vili Fualaau, na época com 12 anos. Mary Kay foi condenada e cumpriu sete anos de prisão, durante os quais teve dois filhos do ex-aluno, com quem se casou depois de libertada.
Abordagem indireta
Mudando os nomes, as profissões e a localização dos personagens, Haynes tomou essa situação básica apenas como ponto de partida, escolhendo um viés original para abordá-la: a atriz Elizabeth (Natalie Portman), em preparação para fazer o papel de Gracie (Julianne Moore), a amante madura, passa um tempo na cidadezinha onde a retratada mora com o marido Joe (Charles Melton) e os filhos.
Vinte anos se passaram desde os acontecimentos espetaculares e aparentemente a poeira do escândalo assentou. A narrativa então se concentra em examinar, com argúcia e sutileza, as reverberações do trauma no imaginário da comunidade e, sobretudo, na vida psíquica dos personagens envolvidos.
Nisso reside a força do filme. Sob a superfície do que parecia ser uma situação apaziguada, surgem fissuras insuspeitadas, provocadas de alguma forma pela intrusão da atriz Elizabeth. A vitrine da feliz família norte-americana multiétnica (Joe é descendente de coreanos) começa a rachar.
Antes mesmo de as cicatrizes serem reabertas e os conflitos virem à tona, Haynes espalha algumas pistas e insinua aquilo que lhe interessa: a consciência (e o inconsciente) dos envolvidos. Não é casual que Joe, por exemplo, tenha como hobby cuidar de lagartas até que elas se tornem borboletas. Sua preocupação em protegê-las da ação exterior durante cada fase do processo expressa (visualmente, sem que seja necessário qualquer discurso verbal) aquilo a que ele próprio não teve direito: um desenvolvimento saudável.
Gracie, por sua vez, refugia-se tanto quanto possível numa atitude de inconsciência, numa inocência fundamental, para não questionar moralmente sua conduta e as respectivas consequências. “Quando foi que caiu a ficha para ela?” pergunta Elizabeth ao ex-advogado de Gracie. Ele responde: “Será que já caiu?” Enquanto isso, Gracie segue sustentando que foi Joe que, aos 13 anos, seduziu a ela, que tinha 36, era casada e mãe de quatro filhos.
A arte de interpretar
Mas há uma outra dimensão no filme, que diz respeito à ideia de representação, ou melhor, de interpretação. Elizabeth quer interpretar Gracie nos dois sentidos do verbo: no de encarnar o papel da outra e no de lhe buscar uma significação. A ambiguidade de sua postura se expressa na conversa que mantém com estudantes de um colégio. Um espertinho lhe pergunta sobre cenas de sexo e ela responde que, durante a filmagem, chega um momento em que a atriz não sabe se está fingindo que sente prazer ou fingindo que não sente. Supõe-se que simula uma coisa para o público e outra para o ator (ou atriz) com quem contracena. Chega a sentir que é prazer o prazer que deveras sente, parafraseando Fernando Pessoa.
May December sugere que na “vida real” há também um aspecto de representação. Cada indivíduo é, em parte, aquilo que quer aparentar. Interpreta a si mesmo. Essa ambivalência transparece em todos os personagens do filme.
Por fim, Segredos de um escândalo entrelaça dois motivos recorrentes na literatura e no cinema: a relação amorosa entre pessoas de gerações diferentes (Lolita é o paradigma) e a chegada de um forasteiro que transtorna um ambiente aparentemente estabilizado (Teorema de Pasolini, O viajante, de Paulo César Saraceni, Um bonde chamado desejo, de Elia Kazan,etc.).
O mérito maior do filme é não fechar questão, não julgar os personagens e não emitir mensagens moralizantes. Mantém as questões em estado de problema, de interrogação. Para isso conta com atuações formidáveis do trio central de atores.
Em tempo: para quem se interessar, a história real de Mary Kay Letourneau e Vili Fualaau (garoto de origem samoana) foi retratada, aí sim com sensacionalismo, no telefilme All-American Girl: The Mary Kay Letourneau Story (2000), de Lloyd Kramer, disponível no YouTube, sem legendas.