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Seis vezes mulher

15 de setembro de 2023

A mostra Seis vezes mulher está em cartaz no IMS Paulista até 23 de setembro.

Apresentação

por Hanna Esperança

E esta é uma festa de palavras. Escrevo em signos que são mais um gesto que voz. [...] Refaço-me nestas linhas. Tenho uma voz.

Clarice Lispector, Água viva

No livro Água viva, de Clarice Lispector, a palavra constante é "liberdade". Ela pode ocasionalmente ser acompanhada de "solidão", mas "liberdade" é sempre afirmativa. É algo que ela – a narradora não identificada, que podemos interpretar como a própria Clarice – sempre, inquestionavelmente, possui com veemência. Escrito em uma espécie de fluxo de consciência com frases cuidadosamente elaboradas, um incansável jogo de linguagem e completamente sem enredo, Água viva é sobre o que se pode criar quando se abandona a forma convencional. Esse é o significado do que Clarice tão claramente chama de “liberdade”: ela é livre porque escreve livremente. Como Clarice afirma em sua crônica “O artista perfeito”, “arte não é pureza, é purificação, arte não é liberdade, é libertação”. Libertação da linguagem, do significado, dos conceitos fixos. A arte, quando se permite ultrapassar os limites do esperado, nos dá voz.

Não é coincidência, então, que Histerias (1983), um documentário experimental dirigido por Inês Castilho, termine com a voz desencarnada de uma mulher, possuindo algumas das palavras de Clarice em Água viva. Histerias também é, afinal, sobre a transgressão da forma, sobre quebrar as regras tanto da narrativa quanto do documentário em si. É também sobre destruir conceitos convencionais de feminilidade e suas representações. Além das muitas outras semelhanças temáticas, isso é o que une os seis filmes da mostra Seis vezes mulher: a busca pela liberdade de desafiar a norma e construir algo novo, seja por meio de uma linguagem inovadora que perturba a feminilidade e o seu significado – Histerias, Preparação 1 (Letícia Parente, 1975), A entrevista (Helena Solberg, 1966) – ou tornando visíveis as lutas e o cotidiano de mulheres marginalizadas – Duas vezes mulher (Eunice Gutman, 1985), Ana (Regina Chamlian, 1982) e Meninas de um outro tempo (Maria Inês Villares, 1987). Qualquer que seja o caminho, esses filmes desafiam a maneira como as mulheres são percebidas e representadas. A mera existência delas impressa em um pedaço de película é um ato de liberdade em si, de criação de uma nova imagem que não tínhamos antes.

Entre esses seis filmes, um período turbulento de pelo menos 20 anos da história brasileira, em que as transformações sociais e políticas da época foram atravessadas por uma ditadura militar violenta e opressora. Nas brechas da opressão e em oposição a ela, o feminismo se reestrutura dentro da sociedade e das organizações preexistentes – associações de bairro, sindicatos, universidades –, e também do cinema, em que as mulheres multiplicam os espaços e passam a ocupar uma parcela expressiva da direção de filmes, sobretudo no documentário e no curta-metragem.

Os filmes que integram a mostra refletem, portanto, as nuances desse momento, que está longe de ser homogêneo no que diz respeito à contextualização da história enquanto agente transformador da arte e do cinema. Se, em A entrevista, realizado apenas alguns anos após o golpe e anteriormente à promulgação do AI-5, a ditadura militar marca presença como narrativa histórica e política a ser discutida em relação direta ao conservadorismo patriarcal, em Preparação 1 e Histerias, ela paira nas entrelinhas da violência dos gestos ou da montagem disruptiva. Nos três filmes, entretanto, a mulher aparece como contradição entre aquilo que é ou deseja ser e como se apresenta ou deveria se apresentar. Nesse processo, a desmitificação – ou o exorcismo – da mulher perfeita e santificada.

Por outro lado, em Ana, Duas vezes mulher e Meninas de um outro tempo, há um diálogo com o momento de reorganização dos movimentos sociais, já no processo de redemocratização do país. Após anos de censura, a voz (corporificada) e a continuidade narrativa ganham relevância nesses filmes, que têm como objetivo central dar espaço a mulheres marginalizadas da sociedade, que recontam a dificuldade dupla que enfrentam não só como mulheres, mas também como mulheres pobres, mulheres negras e mulheres idosas. A violência, por assim dizer, se estabelece não a nível de subtexto, mas a nível dos rostos em primeiro plano e da fala embargada que revisita e compartilha a própria história de vida.

E, entre todos eles, a solidão. Solidão não como fruto de uma individualidade amargurada que se constrói sozinha, mas como solidão coletiva que atravessa 20 anos e mais. Até hoje. Em uma sociedade patriarcal que negligencia a sexualidade, os afetos e a individualidade das mulheres, a solidão se apresenta como consequência das expectativas que nos são impostas. Se essas expectativas são cumpridas, seja no âmbito do matrimônio, da maternidade ou do sexo, como muitas das mulheres em A entrevista, há solidão porque não há outra perspectiva de ser além dos papeis que interpretam, uma solidão que acontece de dentro para fora. Se essas expectativas não são cumpridas, se as mulheres ousam envelhecer, como as meninas de Meninas de um outro tempo, se divorciar ou não se casar, há a solidão do isolamento social, uma solidão que acontece de fora para dentro. É nesse sentido que a voz desencarnada de Histerias recita as palavras de Clarice: “Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar.” Mas, como Clarice continua em seu texto, “grande responsabilidade da solidão”, porque “quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama”. Nesse processo de mais de duas décadas, ainda estamos aprendendo a amá-la. A pergunta é: quem nos ensina? Talvez Seis vezes mulher nos dê indícios de uma resposta. Afinal, se as mulheres que vemos em tela são sozinhas em sua particularidade cotidiana, os filmes têm a capacidade de conectá-las não apenas na própria diegese, que interliga depoimentos, vozes, rostos, contextos, mas também com o público que, hoje, as assiste e as relembra. Maria Inês Villares, em Meninas de um outro tempo, estava certa: “Uma volta enorme para chegar até você, até todas nós”.

Cenas de Mulheres: uma outra história + Sulanca

Entrevista com Katia Mesel

por Glênis Cardoso

 

Glênis Cardoso: Quando você fez Sulanca, em 1986, o filme tinha 40 minutos. No entanto, geralmente os festivais só selecionam curtas ou longas, e os média-metragens ficam sem espaço. Para contornar esse problema, o montador, Severino Dadá, sugeriu dividir Sulanca em três filmes menores. Por muito tempo, a única versão disponível do filme era uma de 15 minutos. Felizmente, uma cópia completa foi encontrada, e agora poderemos assisti-la. Como o filme se perdeu e como foi reencontrado?

Katia Mesel: Na década de 1980, existia o Concine (Conselho Nacional de Cinema), que dava o atestado de qualidade do produto brasileiro pra gente poder exibir. Então, os filmes iam pro Sudeste e já ficavam com um distribuidor para que, quando o filme entrasse num festival, ele fizesse as cópias no Laboratório Líder. Algumas cópias já ficavam na Líder. Outras ficavam na Embrafilme. Quando a Embrafilme acabou, não sei pra onde foram. Depois disso, eu comecei a trabalhar com vídeo. Só fui voltar a filmar em película em 1997, com o Recife de dentro pra fora. Então eu não sabia por onde andavam mais os filmes em película. Alguns estavam na Cinemateca do MAM. A Cinemateca do MAM pegou fogo. Então, foram muitos percalços. E fazer o quê? Estavam perdidos.

Nós começamos a perguntar em vários lugares onde o filme poderia estar, inclusive no CTAv (Centro Técnico Audiovisual), mas a gente não encontrava, porque estávamos mandando as informações pros arquivos falando que o filme era em 35 mm, e a versão que eles tinham no CTAv era uma cópia em 16 mm. Nós só descobrimos isso quando William [Plotnick] foi lá.

GC: Em 2022, você deu uma entrevista para a Karla Holanda que foi publicada pela Another Gaze. Em determinado momento, você falou que seus filmes estavam em tal estado de degradação que era como se a cada dia um filho seu morresse. Desde então, várias coisas aconteceram com seus filmes. Você pode compartilhar em que pé está a sua obra em termos de preservação?

KM: Além dos filmes em película, eu fiz um programa de TV chamado Pernambucanos da gema. O material mais adequado nas televisões no início dos anos 1990 eram as fitas de vídeo u-matic. Fizemos mais de 200 documentários sobre a cultura pernambucana em vídeo. Eu não aparecia. Eram documentários, não matérias jornalísticas. Eram obras de arte. Eu olhava aquelas 200 fitas e dizia: "Meu deus!". Botei em muitos editais de preservação, e nenhum foi aprovado. No ano passado, William [Plotnick] veio ao Recife e perguntou: "Você tem super-8?". Eu disse: "Tenho, mas não presta mais pra nada. Daqui a pouco eu faço serpentina." Ele pediu pra ver e disse que dava pra digitalizar – não só digitalizar, como também finalizar, voltar com as cores. Eu perguntei: "Onde, em São Paulo?". E ele: "Não, em novembro eu volto com um scanner de última geração". Quando ele voltou para digitalizar os super-8, ele viu as u-matics e disse: "Fala com o CTAv". Aí eu liguei pra Natália de Castro, do CTAv, e ela falou pra eu mandar as fitas. Eu passei uma semana tirando fita de cima da prateleira, passando pano, arrumando caixas para mandar. E pensando: "Como eu vou pagar isso?". Porque eram 15 caixas, algumas de 20, 21 quilos. Entrei em contato com o presidente da Fundação Joaquim Nabuco e disse pra ele: "Antônio, é o seguinte: eu sou parceira da Cinemateca Pernambucana. Tudo que eu tenho no meu canal está disponibilizado para o portal da Cinemateca Pernambucana, para o uso que quiser. Minha proposta é a seguinte: vocês pagam o transporte até o CTAv, e todo o material que puder ser restaurado irá para a Cinemateca Pernambucana." Aí ele consultou a pessoa que estava à frente da Cinemateca, e eles aceitaram.

GC: Com a digitalização das suas obras, alguns dos seus filmes estão sendo exibidos novamente. Houve uma exibição no Spectacle Theater, em Nova York, e outra na Cinemateca Brasileira. Kleber Mendonça Filho usou parte do seu curta no novo filme dele, Retratos fantasmas (2023). Como está sendo esse processo de reencontro com as imagens?

KM: Ver aqueles filmes na Cinemateca Brasileira, na sessão Mestras do Cinema Documental Brasileiro – eu falo isso de boca cheia – foi de uma emoção! Eu fiquei rígida, pasma. Foi muito incrível. Até o super-8, apesar de todos os percalços, com todas as perdas, tinha momentos incríveis. A digitalização de Recife de dentro pra fora, eu ainda não vi. Kleber me fez um convite super gentil pra Recife de dentro pra fora abrir a sessão de estreia de Retratos fantasmas no Recife, então eu vou ver como ficou. As digitalizações geraram uma onda. Foi como se os filmes tivessem ressuscitado, porque restituiu uma qualidade de imagem e uma possibilidade técnica de correr o mundo. Já houve um convite da Universidade Federal de Pernambuco para fazer uma Mostra Katia Mesel. Vai ter uma exibição de Sulanca em Santa Cruz do Capibaribe.

GC: Você vai voltar para a cidade onde Sulanca foi filmado para exibir o filme?

KM: O Museu da Sulanca, desde 2021, quer exibir o filme lá em Santa Cruz do Capibaribe. Eu já tô em contato com o secretário de Cultura de lá também, que pode ajudar em alguma coisa, e estou descobrindo algumas empresas que podem ser parceiras para eu fazer outro filme. O primeiro foi A revolução econômica das mulheres de Santa Cruz do Capibaribe [subtítulo de Sulanca], e esse agora vai ser A evolução econômica. Mudou o panorama. Agora é indústria, business. Acho que essa liberdade que elas tanto buscaram e conseguiram, eu tenho a impressão de que mudou muito.

GC: Está com novos projetos?

KM: Vários. Um deles é o seguinte: o primeiro sindicato da América Latina foi o sindicato dos estivadores do porto do Recife. Sabe em que ano foi criado? 1891. Três anos depois da abolição da escravatura. Como é que esses caras se organizaram? É incrível, incrível. Teve a abolição da escravatura, e os caras três anos depois se organizaram e criaram um sindicato. Primeiro, criaram uma caixa beneficente, um clube de dança, enfim. Eu estou digitalizando todos os documentos para eles e o curta-metragem vai se chamar A força humana de um sindicato.

 

Entrevista com Inês Castilho

por Laura Batitucci

 

Laura Batitucci: Produzir cinema feminista durante a ditadura parece um imenso desafio. Como você acredita que as situações enfrentadas nesse período influenciaram o seu filme?

Inês Castilho: A nascente segunda onda do feminismo não chegou a incomodar a ditadura. O assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, em 1976, já haviam disparado o começo do fim do regime, e o Ano Internacional da Mulher, instituído em 1975 pela ONU, deu suporte institucional ao movimento. A esquerda, à época, rejeitava o feminismo, por considerar que as reivindicações das mulheres desviavam o foco da luta de classes, que era a questão principal. As demandas feministas seriam levadas em conta só depois da “revolução”. Vale lembrar que, em São Paulo, o movimento era composto por grupos de mulheres brancas, letradas e de classe média. Não se ouviam, ainda, as vozes das mulheres negras, indígenas, homoafetivas. O feminismo interseccional – o entendimento de que a opressão acontece na intersecção de classe, raça e gênero – foi trazido pelas pretas na década de 1980.

 

LB: Como foi o processo de conseguir apoio de órgãos de cultura estatais para fazer Histerias (1983)? Houve alguma tentativa de censurar temáticas ou cenas? E como foi sua colaboração criativa com a empresa Tatu Filmes, que também produziu Mulheres da Boca (1982)?

IC: A despeito da censura aos jornais, à música, ao teatro, mantiveram-se no estado de São Paulo os concursos de incentivo à produção do curta-metragem. A Embrafilme, federal, tinha naquele momento na direção, em São Paulo, o intelectual Carlos Augusto Calil, interessado em apoiar bons projetos. É preciso ainda lembrar o papel desempenhado pelo grupo de pesquisadoras sobre a mulher da Fundação Carlos Chagas (FCC), que lançou nos anos 1970 um concurso de pesquisas sobre o tema e apoiou o Mulheres da Boca, primeiro filme realizado por Cida Aidar e eu. Também a Fundação Ford, que financiava as pesquisas da FCC, colaborou com a finalização do Histerias. Como se vê, havia brechas na opressão ditatorial. A Tatu Filmes foi fundamental para a realização dos dois filmes. Os sete tatus se engajaram generosamente nos projetos, com o conhecimento técnico que nos faltava, os equipamentos, o entusiasmo. Deixo aqui um agradecimento especial a Chico Botelho, que se encantou em 1991.

 

LB: Como foram as primeiras exibições do filme? De que forma ele foi distribuído?

IC: A primeira exibição do Histerias foi inesquecível. Na pequena sala de montagem da Tatu Filmes, na rua Wisard, de outra Vila Madalena, estavam alguns cineastas consagrados. Entre eles, o crítico, escritor, professor e realizador Jean-Claude Bernardet. Insegura, eu observava as reações. Ao final da projeção, o silêncio só foi quebrado pelos soluços de Jean-Claude. O episódio deu início a uma grande amizade. A distribuição era precária. O filme foi exibido em algumas universidades, grupos de mulheres, de psicanalistas, algumas mostras. Foi selecionado para a Mostra de Documentários de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, e recusado por uma mostra da Folha de S.Paulo. Apesar do entusiasmo de Jean-Claude, crítico influente, o filme teve uma carreira mais que modesta.

 

LB: Pode nos contar sobre a criação da performance Possessão, da atriz Juliana Carneiro da Cunha? Vocês partiram, segundo os créditos, da vida e obra de Santa Tereza d’Ávila e São João da Cruz. Como foi o processo de transformar esses elementos em dança?

 IC: Não criamos, só adaptamos a performance. Assisti ao espetáculo Possessão, com a grande atriz e dançarina Juliana Carneiro da Cunha, quando trabalhava na Folha Ilustrada. Sofri um grande impacto e, ao imaginar Histerias, não tive dúvidas sobre incluí-lo. Acho um dos pontos altos do filme.

 

LB: Histerias foi realizado um ano depois de Mulheres da Boca, e intensifica a tendência de borrar a relação entre documentário e ficção. Como isso foi pensado por você e Cida? Houve pesquisa prévia para as entrevistas?

IC: Sem formação acadêmica, o que nos valia era principalmente a intuição e a colaboração do grande número de amigas e amigos que participaram do processo. Para o Mulheres, fizemos intensa pesquisa nas Bocas do Lixo, onde as mulheres trabalham na rua, e do Luxo, em que trabalham nas boates.

 

LB: O tema da neurose feminina é abordado de forma muito pungente em Histerias. Nos créditos, vemos várias psicanalistas de renome, como Maria Rita Kehl, que participaram na criação do filme. Como foi a experiência de trabalhar com elas?

IC: Histerias começou a nascer, na minha cabeça, a partir da grande excitação observada em mim mesma e nas companheiras de equipe durante a produção do Mulheres da Boca. Era uma festa! Paralelamente, o grupo de psicanalistas ligado a Cida Aidar estudava o tema. Esses foram os disparadores para a ideia do filme, cujo título provisório era “Três Marias ou Histeria”. A síntese genial veio de Isa Castro, atriz, montadora e grande responsável pelo resultado final do filme. Além da contribuição da Cida, não houve participação direta do grupo.

 

LB: Ainda pensando na situação da neurose feminina, o filme traça relações simbólicas entre a religiosidade cristã/católica e o sofrimento da mulher. Qual é sua opinião sobre isso?

IC: Aqui vale ressaltar que a opressão é de mulheres brancas sobre uma mulher negra. A Igreja Católica entra apenas como pano de fundo. A questão racial é apenas insinuada no filme, nessa cena e no olhar curioso do Geleia, office boy da Tatu, providencialmente filmado por Chico Botelho fora do roteiro. Acho que todos conhecemos o papel da Igreja Católica na repressão à sexualidade feminina, e das consequências que podem vir daí.

 

LB: Na sua opinião, que impacto os movimentos de libertação feminina causaram na atual situação de saúde mental da mulher? Houve uma melhora nos últimos anos?

IC: Continuamos vítimas da miséria e da fome. Não há feminismo que alivie a vida dessas mulheres, em geral chefes de família. Penso que o feminismo, como fenômeno cultural, abriu para as mulheres novas possibilidades de respirar. Foi uma alegria assistir, no decorrer das décadas, ao florescer do feminismo negro, aos movimentos das lésbicas e, mais recentemente, à emergência das mulheres indígenas. Há, é claro, muito o que caminhar. Já comemoramos conquistas, como a presença significativa de mulheres, entre elas negras e indígenas, no ministério formado por Lula. Mas atenção! É preciso estar atentas e fortes. Os retrocessos estão à espreita.

Entrevista com Eunice Gutman

por Lorenna Rocha

 

Lorenna Rocha: Numa entrevista para o Another Gaze (2022), você comentou que fazia filmes como forma de revelar coisas para si mesma, para se autodescobrir enquanto mulher. O que acreditava que poderia entender melhor sobre si ou do Brasil nos anos 1980 quando decidiu se aproximar de Jovina e Marlene, duas mulheres negras de uma comunidade do Rio de Janeiro, para o Duas vezes mulher (1986)?

Eunice Gutman: Esse é um filme sobre mulheres imigrantes. Há muitas pessoas que saem do Nordeste para as comunidades do Rio de Janeiro, para ter uma nova vida, outras oportunidades. O Brasil é um país de pessoas que vieram de outros lugares do mundo, seja por vontade própria ou forçada. Então, de certa forma, essa é uma história que está dentro de nós. Minha mãe veio de Pernambuco, e meu pai é da Polônia. Eu estava curiosa para ouvi-las contar sobre suas vidas, sua chegada ao Rio de Janeiro. Foi muito interessante para mim descrever a vida das comunidades. Fui até lá, pesquisei daqui e dali, e encontrei a Jovina e a Marlene.

 

LR: Quando decidiu fazer Duas vezes mulher, de alguma forma, estava buscando dar respostas ao cinema brasileiro da época, muito masculinista e, por vezes, pouco racializado quando se pensava sobre a luta pelo direito à moradia?

EG: Quando vamos falar de processos migratórios, e passo a entrevistar duas mulheres, é pelo interesse de saber como elas reagem a esse mundo patriarcal. Meu início no cinema não se deu com filmes feministas. Em algum momento, lendo livros de Simone de Beauvoir e me informando sobre o assunto, teve uma frase [de Carol Hanisch] que me tocou profundamente: "O pessoal é político". Minha vida é política, e foi daí que veio a vontade de discutir sobre os temas a partir da perspectiva das mulheres.

 

LR: Fico com a sensação de que você se tornou feminista ao mesmo tempo que se entendia enquanto diretora de cinema. Faz sentido?

EG: Exatamente. O primeiro filme que dirigi foi para o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), um centro de alfabetização para adultos. A personagem era uma senhora de 77 anos, que dizia que à medida que ela aprendia a ler, ela descobria que o mundo era maior que sua casa. Achei isso fantástico. Foi uma batalha para fazê-lo na época, porque era um homem quem ia assumir a direção, alguém que não tinha conhecimento nenhum sobre cinema. Falei com os diretores do Mobral que havia estudado na Bélgica e que ia dirigir o filme. Foi meu primeiro filme enquanto realizadora, porque me coloquei como uma pessoa que sabia fazer aquilo. Eles adoraram. Exibiram E o mundo era muito maior que a minha casa (1976) em todos os lugares. Me animei, porque nem eu mesma achava que conseguiria ser realizadora.

Quando cheguei na Europa, o curso de direção era voltado para homens. As mulheres lá faziam a montagem dos filmes. Mas, quando voltei ao Brasil, a sala de montagem não era "um lugar apropriado para mulheres". Dei muita risada, não desisti e comecei minha carreira como montadora. Após o Mobral, dirigi três filmes: Com choro e tudo na Penha (1978), Anna Letycia (1979) e Só no Carnaval (1982), em parceria com Regina Veiga, que foi minha colega na Escola de Cinema de Bruxelas.

Existia uma grande onda feminista na Europa e nos Estados Unidos. Depois chegou aqui no Brasil. Isso ajudou a nos unirmos enquanto mulheres. Foi assim que começamos as atividades do Coletivo de Mulheres de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro (1985-1987). Depois teve outro em São Paulo, em outras regiões, mas depois parou. Foi uma força que nos animou muito a fazer filmes. Resolvemos nos juntar porque havíamos percebido coletivamente que o cinema estava na mão dos homens. Era preciso dar uma força para a outra. Não aceitar essa divisão imposta pelo patriarcado.

 

LR: Como você decidiu atuar como documentarista?

EG: Muitas mulheres faziam documentários porque era mais barato, o orçamento era menor. Uma vez, ouvi um diretor francês dizer que o documentário também é uma ficção. Porque, quando vamos entrevistar um personagem, estamos levando perguntas que têm a ver com nós mesmos. Estamos criando uma história através daquela pessoa. Por que fazemos determinadas perguntas e não outras? Isso também é ficção. Há vários aspectos na vida de uma pessoa. Somos nós que escolhemos o que desejamos que ela fale.

 

LR: E o que há de mais instigante para você nesses momentos de entrevista? No corpo a corpo com as entrevistadas? O que sente enquanto diretora?

EG: Gosto quando encontro reciprocidade aos meus pensamentos, quando se forma uma parceria. Realmente, nós estamos criando uma história junto ao personagem. Mas também tenho filme de ficção: Tempo de ensaio (1986). O tema é uma peça teatral que apresenta os problemas de uma mulher que sente necessidade de mudanças em sua vida cotidiana de mãe e esposa.

 

LR: Como tem sido para você presenciar esse processo de preservação e difusão de sua obra?

EG: As discussões presentes no meu trabalho eram vistas como algo não oficial, assuntos para não serem revelados. Com essa nova onda do feminismo, ficou totalmente comum, tenho que me animar, colocar os filmes em festivais, programá-los. Recentemente, fizeram uma exposição com meu trabalho em Laranjeiras, uma coisa linda. Fui homenageada pela Cavídeo (produtora do cineasta Cavi Borges), e eles me ajudaram a terminar meu último filme, Luzes, mulheres, ação (2022). Fiz vários filmes com personagens feministas e pensei que ninguém ia vê-los. Então, decidi juntar e fazer um longa. Entrevistei mulheres mais jovens e filmei algumas passeatas a partir de 2013. Estreamos na última edição do Festival do Rio.

Acho que estamos num momento de vitória, temos muito mais facilidade para ver os filmes. Isso influencia as novas gerações, influencia positivamente. Estou gostando muito dos filmes das jovens! No fundo, é a mesma história, né? Por que querem nos calar? Não queremos. Não queremos ficar caladas!

Entrevista com Helena Solberg

por Andrea Ormond

 

Andrea Ormond: Em vários momentos da sua trajetória, você precisou encarar e conversar com o outro. Você vê diferenças entre a Helena Solberg entrevistadora e a Helena Solberg entrevistada?

Helena Solberg: Minha experiência de muitos anos com o documentário me deixou muito consciente do poder e do efeito da câmera na entrevista filmada. A possibilidade de manipulação é absurda. A presença dela é sempre perturbadora para o entrevistado. Sei exatamente o momento em que o entrevistado esquece a sua presença, e é uma vitória para o entrevistador. A entrevista por escrito permite a reflexão e a possibilidade de se construir como personagem. As duas são reveladoras de aspectos diferentes. Prefiro estar longe da câmera.

 

AO: Passemos ao seu curta-metragem de estreia: A entrevista (1966). Na abertura, ouvimos um carrossel de referências que remetem à infância da sua geração. Entre elas, uma gargalhada de bruxa, daquelas que anunciavam o medo e a culpa nos contos de fadas. Para filmar A entrevista, você precisou vencer alguma bruxa (interior ou exterior), eu imagino. Fale um pouco sobre isso.

HS: Eu amo a bruxa! Ela diz: “Vou deixar que as outras fadas façam suas profecias para depois eu fazer a minha”, e dá uma gargalhada sinistra. Milhares de mulheres foram queimadas em fogueiras como bruxas. Elas ameaçavam o sistema porque eram sábias. Eram curandeiras e poderosas nas comunidades, usurpavam o poder dos homens e tinham que ser eliminadas. A intenção da sua presença no filme foi uma provocação para alertar que o modelo programado pela sociedade para as moças não ia dar certo.

 

AO: Um aspecto que nem todo mundo comenta, mas que é surreal e importante. Até a publicação do Estatuto da Mulher Casada (lei n° 4.121, de 1962), a mulher brasileira possuía uma série de restrições pelo Código Civil. Exemplos: falta de poder sobre os filhos; impossibilidade de ter profissão sem autorização do pai ou do marido. Você lembra de ter vivido isso na prática?

 HS: Vivi mais através de minha mãe, que se indignava com o absurdo da situação.

 

AO: Conte um pouco sobre a sua experiência de estudante na PUC do Rio de Janeiro, um dos berços do Cinema Novo.

HS: Foi um mundo novo. Até então, nunca havia convivido com rapazes em uma sala de aula. Havia também o fato insólito de que nossa casa, onde vivi momentos importantes da minha adolescência, estava situada, e ainda está, dentro do território da PUC. O passado e o futuro se encontravam ali, e a sensação e as memórias eram às vezes perturbadoras. Fiz neolatinas, e isso abriu uma porta para a literatura latino-americana, que até então não conhecia. Minha formação era mais eurocentrista. E conheci amigas e amigos que foram significativos em minha vida, como Heloisa Buarque de Hollanda, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues… Iria reencontrá-los no jornal estudantil O Metropolitano, em que trabalhei como repórter.

 

AO: Nas perguntas acima, nós comentamos sobre o extraquadro, sobre o mundo fora das câmeras. Pelo fato de ser documentário, A entrevista trouxe muito do extraquadro. Isto foi uma opção consciente? Como surgiu a ideia de fazer o filme?

HS: As mulheres de minha geração não tinham o hábito de conversas muito íntimas entre si. Havia uma certa censura sobre assuntos, digamos, “periclitantes”. Achei que poderia derrubar essa barreira dando uma cara de assunto de pesquisa para um filme em que as identidades não seriam reveladas. Na verdade, precisava buscar respostas para muitas questões que eram ainda tabus entre nós, e essa foi uma tática. O problema é que não queriam ser filmadas, e isso me obrigou a construir essa imagem da noiva sendo montada para o casamento e desconstruída pelas entrevistas. Foi realmente um obstáculo salvador, pois senão terminaria com uma série de talking heads. Foi um desafio. Foi exigido um esforço criativo, e isso enriqueceu mais o filme e o tornou mais original.

 

AO: Você viveu dos anos 1960 ao início dos anos 2000 fora do Brasil. Como a sociedade e o cinema estrangeiros mudaram a sua pulsão criativa? Ou não mudaram?

HS: Na verdade, vivi dois anos fora, de 1960 a 1962. Depois fiquei 30 anos fora, de 1970 a 2000. Não sei se [mudaram] a “pulsão criativa”, mas certamente [ofereceram] mais mecanismos de produção, mais recursos, mais fundações progressistas. Para quem estava saindo do Brasil logo após o Ato Institucional nº 5, foi uma sensação de liberdade. O movimento feminista fervilhava no momento, e os protestos contra a guerra do Vietnã eram impressionantes. Havia um clima libertário provocado pela onda hippie, além de tudo. Havia muitos brasileiros no exílio. Olhar seu país de fora, com distanciamento, foi uma experiência essencial.

 

AO: Em Bananas Is My Business (1995), você celebra uma espécie de acerto de contas sobre Carmen Miranda. Narrou de própria voz a vida de Carmen e, ao mesmo tempo, realizou a pesquisa para conhecê-la melhor. O que é o filme hoje para você?

HS: Foi uma experiência bem interessante porque fui descobrindo aspectos na trajetória dela que sempre me interessaram e que já haviam sido tratados em outros filmes. Acho que o mais importante seria a constatação da perda que ocorre no esforço de nos traduzirmos para o estrangeiro. O mais difícil foi introduzir meu alter ego. Um personagem meio fictício, meio verdade, que era eu. Acho muito difícil escutarmos nossa própria voz – constrangedor, mesmo –, e custei a encontrar o tom e aceitar o papel, mas era necessário para criar a empatia e transmitir a emoção. Gosto muito dessa mistura de documentário e ficção, que acho que deu certo em Carmen.

 

AO: Minha vida de menina (2003) traz um Brasil do século XIX, na voz de uma garota que escrevia diários. Como foi trazer à cena aquele mundo tão diferente de 2003?

HS: Foi minha primeira experiência com atores, e a única até hoje. A convivência com toda a equipe por dois meses concentrados, isolados em Diamantina, onde a história aconteceu, foi mágica. A população da cidade nos recebeu de braços abertos, e muitos participaram como extras.

 

AO: Outros filmes seus têm a raiz em personagens femininas com o pano de fundo de um tempo específico. Meu corpo, minha vida (2017) é assim. Sem final feliz, sem o direito a respirar. Qual a ponte possível entre Glória Solberg, de A entrevista, e Jandyra Magdalena dos Santos, de Meu corpo, minha vida?

HS: Essa “ponte” a que você se refere está sendo contestada e analisada pelo movimento feminista agora. O feminismo negro está se fortalecendo e nos obrigando a entender nossas reivindicações com um outro olhar. A questão do lugar de fala é, no momento, a pauta mais discutida e contestada, e que – esperamos – vai nos ajudar a caminharmos juntas.

 

AO: Obrigada pela lucidez e pela coragem de sempre, Helena.