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Vendo a vida derramar

02 de outubro de 2024

A Sessão Cinética: Muito prazer está em cartaz no cinema do IMS Paulista em outubro.

 

O sol está batendo forte, e o Rio está quentíssimo. Homens e mulheres desfilam desnudos no passeio, conversam sobre si e sobre os outros, trabalham um pouco e bebem um bocado. Não são férias, mas poderiam ser. Os dias derretem às sombras dos problemas conjugais na Zona Sul carioca, e é entre o bar, o escritório, a praia e a casa que Muito prazer (1980) acontece.

Com a câmera quase sempre um pouco abaixo da linha dos olhos, o longa-metragem passeia por entre os corpos bronzeados, trajados de linho cru ou seda, cujas vidas ordinárias compõem um mosaico da vida carioca. Parte de uma Trilogia Carioca – junto aos subsequentes Fulaninha (1986) e Jardim de Alah (1988), Muito prazer tem como objeto de interesse um grupo de amigos que vivem, trabalham e se divertem por ali, ao mesmo tempo que também observa um grupo de três adolescentes quase crianças que vendem amendoim no semáforo. De fronteiras estreitas, a cartografia de Muito prazer inscreve poucas ruas como parte de seu território, e a maneira como o espaço cenográfico é enquadrado nos relembra, o tempo todo, a que microcosmo esses personagens pertencem, a Zeitgeist da Lagoa no início dos anos 1980.

Nádia (Ítala Nandi) é casada com Ivan (Otávio Augusto), e eles enfrentam um período de estiagem sexual devido à bebedeira do marido, e Nádia sente que sua vontade já é maior que seu medo. Ivan é sócio de um escritório de arquitetura junto a Aquino (Cecil Thiré), com quem sua esposa começa a ter um caso, e a Chico (Antônio Pedro), um solteirão afiado nas impressões e bastante reservado com sua vida pessoal. Aquino, por sua vez, é casado com Ângela (Betty Van Wien), uma cocotinha muito bem-vestida com quem não divide muitos interesses e por quem está paulatinamente se desapaixonando.

Dado o enredo central, o filme se desenrola por entre as conversas desse grupo de amigos em festas, no trabalho e nos bares da Lagoa. Sem artifícios expositivos, o filme confia nos diálogos, que cena a cena nos informam dos dramas do grupo. Sempre requisitando uns aos outros para uma “conversinha”, a troca entre duas ou mais pessoas é o espaço de apreensão do contexto, que também nos revela, por consequência, uma disputa de interesses com a qual o espectador é convidado a se relacionar intimamente. Parte das mesas de conversa, da partilha e da parceria, o cinema de David Neves fugiu das teses e assentou-se em um retratismo menos alegórico e mais tangível, que nos convida ao escrutínio das relações através das cenas cuja partilha emerge do diálogo.

Cena de Muito prazer, de David Neves

Dado o enredo central, o filme se desenrola por entre as conversas desse grupo de amigos em festas, no trabalho e nos bares da Lagoa. Sem artifícios expositivos, o filme confia nos diálogos, que cena a cena nos informam dos dramas do grupo. Sempre requisitando uns aos outros para uma “conversinha”, a troca entre duas ou mais pessoas é o espaço de apreensão do contexto, que também nos revela, por consequência, uma disputa de interesses com a qual o espectador é convidado a se relacionar intimamente. Parte das mesas de conversa, da partilha e da parceria, o cinema de David Neves fugiu das teses e assentou-se em um retratismo menos alegórico e mais tangível, que nos convida ao escrutínio das relações através das cenas cuja partilha emerge do diálogo.

David Neves, um diretor de cinema autointitulado carioca-diamantinense, compôs o grupo cinemanovista e produziu cerca de 30 filmes, entre longas e curtas. Formado em direito pela PUC-Rio, pouco exerceu a carreira e logo se embrenhou nas mais diversas atividades cinematográficas, tendo participado já das primeiras produções do Cinema Novo no começo dos anos 1960. Foi crítico de cinema e também participou na escrita de diversos roteiros de seus pares ao longo da carreira, tendo sido um personagem importantíssimo na formação da classe naquele período.

Para além de cineasta e cinéfilo, a pertença de David Neves ao espaço que ele registra é manifesta. A naturalidade de seus personagens, tão integrados ao espaço que os acolhe e tão cheio de traços que denunciam seu exato local social, evapora as estranhezas comuns que rondam a relação entre o Eu e o Outro. David Neves filma aquilo que conhece, e é reconhecido de volta pelos seus objetos. A mise-en-scène orgânica é o resultado de um compadrio entre quem filma e o que é filmado.

O gesto é simples, e é primorosa a maneira com que David Neves equilibra o plano semântico com o plano formal. Tratando de temas da ordem do repreensível à la Nelson Rodrigues, como alcoolismo, sexo, traição e ladroagem, Muito prazer não julga seus objetos. Pelo contrário, parece estabelecer com seus personagens um pacto afetivo que os compreende, acima de tudo. A câmera é cortês com os personagens e investiga seus desejos sem jamais reprimi-los, ostentando a afabilidade que se estende a todos os retratados.

Sem narrador definitivo, o filme opta por nos informar desse universo por meio das impressões dos adolescentes que trabalham na rua por ali. Observadores da vizinhança, os meninos são comentaristas argutos sobre os acontecimentos que os rodeiam. A mediação estabelecida pelos três meninos, que comentam suas impressões sobre os causos daquele núcleo de amigos, não é senão uma proposta formal: a câmera baixa ocupa o lugar do que seriam os olhos dos pivetes e sugere ao espectador um ponto de vista narrativo, ainda que pouco delineado. Mesmo quando os meninos não estão em cena, essa opção de filmagem permanece ao longo do filme, como que assegurando a perspectiva amoral e curiosa que só uma criança quase adolescente pode ter. Ao nos colocar como espectadores da vida desse grupo tal qual os meninos também o são, David Neves sublima a arrogância do julgamento adulto em prol de uma bisbilhotice naïve levemente maliciosa, e seu filme se encerra justamente quando a inocência dá lugar ao ardiloso.

Em uma descendente, Muito prazer faz o retrato de uma boêmia em decadência. Ainda na festa, desavisados que aquele mundo está prestes a ruir, o retrato preciso daquele momento é evanescente, e o marcador disso é o rompimento da relação simpática e debochada entre os pivetes e o grupo de adultos, quando eles resolvem assaltar Nádia. Das brincadeiras jocosas e sacanagens risíveis, sobra o assombro causado pelo assalto. A magia daquele espaço que a todos perdoa e todos compreende dissipa e dá lugar ao mais sério dos desconsolos: o do entendimento. Sentados na calçada em frente ao escritório dos três sócios, Ivan, Chico, Aquino e Nádia encaram o acontecimento e, na mesma medida, encaram a si mesmos em suas respectivas situações, suas mazelas e desencantos, e se despedem do filme curvando-se a nós, de pé, em um rompimento diegético, mas absoluto. A encenação se encerra porque a ilusão se encerra e a vida frugal é vítima da vulgaridade do real.