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Shaft, uma imagem inútil?

24 de novembro de 2025

Quem é o detetive pretão
Que dá no couro com todas as gatinhas?
Shaft!
Matou a pau!
Quem é o homem que arrisca o próprio pescoço
Para proteger seus irmãos?
Shaft!
Pegou a visão?
Quem é o chapa que não se amedronta
Quando o perigo ronda?
Shaft!
Matou a pau!

Isaac Hayes, canção-tema de Shaft (1971). Tradução livre minha

 

Composta especialmente para Shaft (1971), a canção-tema que embala as imagens dos créditos de abertura – nas quais vemos o herói do filme, John Shaft, andando pelas ruas e calçadas de Manhattan, Nova York, com o conforto e a segurança típicos de quem é o rei da cocada preta –, sintetiza alguns dos atributos que distinguem, de forma elogiosa ou problemática, o protagonista desse que é o mais icônico dos filmes da então chamada blaxploitation. Seguindo a letra de Isaac Hayes, aprendemos, pela ordem dos versos, que o detetive Shaft: é uma potência sexual; tem consciência de raça; é destemido e não foge da treta quando o perigo se apresenta; e que, pela estrutura dialógica da canção – Isaac canta um verso, o coro responde com um agudo “Shaft!” –, ele é uma figura de trajetória interessante o suficiente para ser partilhada – mais que isso: entoada.

Ainda que o filme tenha uma materialidade e uma fisicalidade evidentes (porradaria e tiros, tempo histórico marcado e identificável, relações de poder indissociáveis dos lugares sociais ocupados por cada um dos personagens), é necessário pontuar que Shaft não é um homem, mas uma entidade da ordem do supra-humano. Uma análise fílmica mais atenta dos créditos permite tal leitura.

A câmera começa passeando numa aérea à procura de um alguém. Ao surgir das escadarias do metrô, um acorde grave reforça a chegada do personagem – troca-se também o enquadramento (do plano geral para um close, com o rosto do ator Richard Roundtree suavemente entrando à frente do rosto de um branco num outdoor em segundo plano). O que se segue nos próximos quatro minutos da abertura é uma performance de diva da masculinidade: Shaft tem a cidade em suas mãos e descobriremos isso pela maneira em que ela (a cidade) abre passagem para ele – ou melhor, pela maneira em que ele a adentra sem pedir passagem.

Em quatro minutos, John Shaft, um homem negro, anda por entre os carros num dia movimentado, cria uma marca de diferenciação entre ele e um assaltante pé-rapado ao mostrar o distintivo, transborda sedução ao ser enquadrado à frente das luminárias de um cinema, interage com um cego jornaleiro e contorna uma piada potencialmente racista e, finalmente, chega ao seu destino, uma engraxataria, onde interage com um “mais velho”. Se O.J. Simpson só conseguiu passe livre para correr num aeroporto por meio da aprovação simbólica dos brancos, que dizem “Go, O.J., go!”[1], Shaft não precisa, muito menos pede autorização para parar as ruas de Nova York, porque seu passe para tal liberdade simbólica é ser cool. É o cool que torna Shaft supra-humano.

Parente do que hoje chamamos de dandismo negro, o “cool” – ou “descolado”, numa tradução livre e insuficiente – é, no contexto afro-americano, uma estratégia de vida que articula visibilidade e opacidade. Ele representa, nas palavras do músico, documentarista e pesquisador Questlove, “um engajamento social que mascara um tipo de desengajamento” e contém “um fiapo de ameaça”, levando à inevitável pergunta: “E se a máscara for levantada e a fúria for liberada?”[2]. Ao longo de todo o filme, o detetive Shaft arroxa e afrouxa a mangueira da fúria, e as consequências desse manejo para a América branca difere significativamente em comparação com a negra.

Cena de Shaft, de Gordon Parks

Um blaxploitation de Gordon Parks

Quinto filme de Gordon Parks, fotógrafo cujas primeiras realizações cinematográficas representam uma espécie de extensão política e estética de seu olhar para a fotografia, Shaft foi realizado já no contexto do blaxploitation. Definido por alguns como um movimento[3], trata-se de um conjunto de centenas de filmes realizados entre 1970 e 1975 e que compartilham características estéticas e temáticas, tais como: cinema de gênero (filmes de ação, horror, comédias ou policiais); elencos e histórias negras (o que se reflete na ambientação em espaços urbanos majoritariamente negros e estereótipo reverso para os personagens brancos); abundância de musicalidade soul, tanto diegética e extradiegética; e serem realizados com vistas a atingir massivamente o público afro-americano. No geral, filmes de baixo orçamento, com diretores brancos ou negros comandando histórias de mocinhos negros e negras combatendo vilões brancos – há antagonistas negros, mas, grosso modo, a vilania é branca.

O blaxploitation – que prefiro definir como um “momento”, muito mais que um “movimento” – é resultado de condições históricas que permitiram o surgimento desses filmes que, por outro lado, moldaram uma era, numa via de mão dupla repleta de contradições refletidas em seu próprio nome[4]. Por isso mesmo, não cessa de interessar e mobilizar afetos, muitas vezes contraditórios. Encarar os filmes do blaxploitation com a expectativa da positividade aprisionante e normativa de Medida provisória é o mesmo que ir para uma quadra de basquete esperando pontuar usando um taco de beisebol. Trata-se de representações que tensionam os entendimentos do que seria uma boa imagem – aquela que, nas nossas justificadas ânsias de que finalmente desfrutaremos da nossa humanidade, exibimos para o mundo branco, como que apelando: “Vês? Não sou eu um humano? Então por que me matas?”

As imagens de Shaft não têm utilidade, a não ser prazer espectatorial. E o que nós, espectadores negros, fazemos com imagens inúteis?

Shaft, tal como todos os filmes feitos no contexto do blaxploitation, se apoia em reducionismos e estereotipias, aspecto que, desde o início, gerou oposições e debates intensos na comunidade afro-americana[5]. Mas uma espectatorialidade negra ativa não implica justamente a lida com a realidade da contradição, em vez de sua ideia? Ou reduzimos a nossa espectatorialidade a um mero ranqueamento de representações problemáticas versus representações “fecho”? O prazer entra na nossa equação espectatorial?

Essas são algumas questões interessantes de serem mobilizadas numa sessão de Shaft mais de cinco décadas após o seu lançamento.

 

A mostra Gordon Parks: a América sou eu está em cartaz no cinema do IMS Paulista em novembro.


 

[1] The superstar in rent-a-car!. Campanha televisiva, dez. 1977. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=A4LECXW_MQY.

[2] “Questlove’s How Hip-Hop Failed Black America, Part III: What Happens When Black Loses Its Cool?”. Vulture, 06.05.2014. Disponível em: www.vulture.com/2014/05/questlove-hip-hop-failed-black-america-part-3-black-loses-cool.html. A versão traduzida desse texto está disponível em: https://ursodelatadotcom1.wordpress.com/2016/12/11/traducao-questlove-sobre-quando-o-negro-perde-seu-ar-cool-hip-hop/.

[3] Uma referência importante para a definição do blaxploitation como movimento é: LAWRENCE, Novotny. Blaxploitation Films of the 1970s: Blackness and Genre. Nova York: Routledge, 2008.

[4] Blaxploitation é a corruptela de duas palavras em inglês: “Black” (“preto’) e “exploitation” (“exploração”), que também faz referência ao gênero cinematográfico de mesmo nome. O termo surgiu pela primeira vez na imprensa em 17 de dezembro de 1972, num artigo de Julius Griffin, então presidente da Seção Hollywood da NAACP, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, escrito para o The New York Times.

[5] A mesma edição de domingo que abriu espaço para o artigo de Griffin intitulado “Black Movie Boom: Good or Bad?” [Explosão de filmes negros: positiva ou prejudicial?] viu também a presença de outros articulistas se posicionando a favor do que então passava a se entender como filmes blaxploitation.