Entre os “filmes do Oscar”, talvez o mais adulto seja Tár, dirigido por Todd Field e conduzido – em mais de um sentido – por uma Cate Blanchett em estado de graça.
Não é exato dizer que, no papel da maestrina e compositora Lydia Tár, a atriz carrega o filme nas costas. Ela o carrega nas costas, nos braços, nos olhos, na voz – em suma, no corpo todo, convertido em veículo de drama e música.
É do embate entre drama e música, aliás, ou entre vida pessoal e arte, que o filme extrai sua força. A primeira sequência, uma longa entrevista da maestrina, então no auge do prestígio, à revista New Yorker, pode criar o receio de que virá pela frente uma obra pernóstica e palavrosa sobre a música erudita. Falsa impressão. A conversa é importante por dois motivos: 1. mostrar a protagonista como alguém que tem um entendimento sofisticado da música e um comprometimento profundo com ela; 2. introduzir, no comentário sobre a Quinta Sinfonia de Mahler e a relação do compositor com a esposa, o tema citado da relação entre arte e biografia.
Cultura do cancelamento
Esse embate não se dá em abstrato, mas num contexto drasticamente contemporâneo, de circuito cultural de elite, gravadoras globalizadas, patrocinadores, divulgadores, publicitários, redes sociais, comunicação frenética e, sobretudo, demandas identitárias que, exacerbadas e distorcidas, levam à chamada “cultura do cancelamento”. Como diz a certa altura um personagem, no mundo das redes, ser alvo de um processo já equivale a estar condenado.
Numa aula da maestrina na célebre Juilliard School, de Nova York, um jovem violinista diz que “não curte Bach” porque o compositor alemão seria misógino. “Não é verdade que ele fez mais de vinte filhos?”, pergunta ele. “Sim”, responde Lydia, “e uma obra musical considerável também”. A discussão que se segue, comandada por uma Lydia Tár/Cate Blanchett que parece possuída por uma força sublime, resume muito do debate atual sobre conduta pessoal e criação artística, identidade e representação.
A própria trajetória de Lydia Tár, evidentemente, será um campo de batalha entre essas forças. Humana, demasiado humana, ela vê a impureza da vida contaminar a suposta pureza de sua arte. O diretor Todd Field constrói uma narrativa consistente que potencializa o drama pessoal e artístico da protagonista. As elipses precisas, os deslocamentos vertiginosos – Berlim, Nova York, Filipinas –, o coro predominantemente silencioso das pessoas que cercam a maestrina (sua companheira, sua filha, sua assessora pessoal, seu regente-assistente etc.), a relação sempre viva com o espaço circundante, tudo isso desfaz lindamente a possível impressão inicial de um filme de verbalização excessiva.
Espaço vivo
Esse último aspecto, a função dramática do espaço, fica evidente, por exemplo, na cena em que Lydia entra num prédio decadente à procura de sua jovem protegida (a violoncelista russa Olga/Sophie Kauer) e se aprofunda num lugar escuro e labiríntico, figuração de abismo ou pesadelo. Em outra passagem, uma discussão áspera com a companheira (Nina Hoss) se dá no interior do automóvel, numa avenida berlinense de tráfego intenso, com buzinas e freadas ameaçando um desastre. Há ainda a tensão dos bastidores de concertos e ensaios, o aproveitamento expressivo da arquitetura dos teatros. Nada que não tenha sido feito antes no cinema, mas aqui perfeitamente a serviço da trajetória trágica da protagonista.
Um capítulo à parte poderia ser dedicado à atenção ao som, ao modo como ruídos, vozes e silêncios se interligam com a música de modos sutis, influindo por exemplo sobre a atividade de compositora da protagonista.
Tár concorre aos Oscars de filme, direção, atriz, roteiro, fotografia e montagem. Talvez ganhe alguns, talvez não ganhe nenhum, pouco importa. Não estamos falando de concurso de miss ou corrida de cavalos, mas de cinema.