Texas Hotel & Amarelo manga
Nesse mês de junho, o cinema do Instituto Moreira Salles propõe uma revisão em sessões especiais - a partir de cópias 35mm - de dois filmes irmãos realizados por Claudio Assis, raramente projetados juntos: Amarelo manga - cujo lançamento completa agora 20 anos - acompanhado do curta-metragem marcante que é Texas Hotel (1999), onde Assis já mapeava a geografia e a arquitetura do centro da cidade do Recife registradas no filme seguinte.
De fato, Amarelo manga apresentou uma imagem nova de uma cidade brasileira, o Recife, como cidade-rua e cidade-gente. Há 20 anos isso já estava claro, mas numa revisão beneficiada pelo tempo, isso é ainda mais forte. É o primeiro longa-metragem de Assis.
Texas Hotel e Amarelo manga são também frutos das visões reunidas de Cláudio Assis, do roteirista Hilton Lacerda, da diretora de arte Renata Pinheiro e do fotógrafo Walter Carvalho. Hilton, Renata e Walter são também cineastas em trajetórias próprias.
Texas Hotel, com 15 minutos, nos propõe uma imersão de mise en scéne e som que consegue estabelecer um clima tenso de instabilidade. É sombrio, mas é também solar e é fascinante. A câmera move-se como uma alma, é safada e é generosa. O centro do Recife ganha uma crônica escrita pela imagem de cinema. Esse cinema fortaleceu muita gente a fazer seus próprios filmes naquela época.
Se a força de Amarelo manga era evidente para pernambucanos, no resto do país a visão de Cláudio também foi percebida. O filme impôs-se com seu tom autoral singular, foi áspero e incomum num cinema brasileiro do início da década de 2000 que seguia outros procedimentos.
Amarelo manga era também um filme de Pernambuco, numa época em que a diversidade regional na produção nacional ainda precisava melhorar bastante. Derrubou a porta e levou às salas mais de 150 mil espectadores, um número ainda hoje (ou hoje mais ainda) extraordinário. Para além de um reconhecimento popular, foi também muito bem recebido pela crítica brasileira.
Eu lembro da sessão de estreia de Amarelo manga no Festival do Rio, no Cinema Odeon. Foi empolgante, tinha uma eletricidade. Como recifense, algo me chamou a atenção de imediato: ver Recife em CinemaScope pela primeira vez, o formato de filmagem e de projeção associado intuitivamente ao "cinema rico", ao “cinema estrangeiro”.
Falar aqui de CinemaScope talvez soe anacrônico hoje em dia com as possibilidades livres da tecnologia digital, mas nos anos 1990 contavam-se nos dedos de uma só mão os filmes brasileiros com a imagem larga e que exigia procedimentos mais luxuosos. A decisão de fazer o filme neste formato me pareceu uma subversão inteligente dos realizadores, àquela altura.
Não só a cidade-personagem do Recife era vista em tela larga, mas as cores vivas do filme retangular enquadravam a pobreza crua do Brasil com naturalidade e sem pedir desculpas. Naturalidade, para alguns, chocante. Era uma inversão e tanto da iconografia conhecida - e praticada - ao longo da história do Cinema Brasileiro. Amarelo manga tinha uma imagem impressa de cinemão sem curvar-se a exigências de uma lógica temática de cinema industrial.
Essa aspereza, no entanto, foi contrabandeada numa embalagem com nomes da dramaturgia oficial brasileira como Jonas Bloch, Dira Paes, Chico Diaz ou Matheus Nachtergaele, e também de rostos do Recife, como Conceição Camarotti e Magdale Alves. Ou ainda de atores e atrizes não profissionais, com ou sem fala.
O sentido geral de crueza era real, mas o tratamento dado com esse elenco gerou um equilíbrio entre artifício e realismo que raramente manifestou-se de forma tão segura. Amarelo manga seria um folhetim poderoso, rodado em 35mm, com tudo aquilo que as novelas não mostrariam nunca. E feito no Recife.
Eu fui ver Amarelo manga outras vezes, uma delas no Cinema do Parque, a sala hoje centenária com estrutura de ferro belga fundido. O Parque fica no centro do Recife, a 200 metros da locação principal do Texas Hotel, usada nos dois filmes. O ingresso me custou um real e lá o filme foi visto por 16 mil espectadores, que pagaram esse mesmo preço único.
Um bom livro poderia ser escrito sobre filmes pernambucanos apresentados no Cinema do Parque, onde - para início de conversa - a tela na época não comportava o quadro CinemaScope de Amarelo manga, pois era estreita demais. O filme, no entanto, parecia estar passando em terceira dimensão, ali na Rua do Hospício.